Era sempre primavera ou verão, e especialmente os meses de outubro e novembro, que era quando as jabuticabas estavam prontas para serem devoradas. Antes disso era esperar pacientemente, dar pulinhos quando as primeiras bolinhas verdes apareciam nos galhos, e torcer pra que pipocassem logo nos três pés da fruta, além de condicionar todo o nosso desejo por elas, pra que casassem com os meses certos em que poderíamos colhe-las. Por sorte, havia uma mãe bastante convincente que nos incentivava a saborea-las ali mesmo, ao pé da árvore, sem água ou lavagem. “É da natureza”, ela dizia, e seu argumento era o suficiente. Subíamos o mais alto que alcançassem nossas perninhas para pegar os frutos gordos, e escapavam suspiros quando elas estavam já murchas, bicadas por passarinhos: felizes por eles, e com uma pontinha de inveja.
O mesmo com as goiabas: é da natureza. Mas também eram da natureza os bichos que eventualmente as habitavam, e por isso eu nunca comi goiabas. Por via das dúvidas, nunca comi, também, goiabadas ou qualquer derivado da fruta. Gostar de goiabas, como se pode deduzir, era bem mais complicado que gostar de jabuticabas.
Amoras, então! Quase sempre azedas e fazendo ameaças de manchas nas roupas e biquinis, só dava uma vez por ano e era um salve-se quem puder: crianças afoitas ao redor do pé que era alto demais pros nossos bracinhos. Comer amoras começou a ser legal depois dos 12 anos, ou a partir de 1m40.
Mais convidativas eram as mangueiras, cheias de galhos grossos que pareciam ter sido esculpidos pras nossas aventuras de escalada, e que ficavam bem mais atraentes com a ajuda de uma cadeira estrategicamente posicionada. As boas eram as mangas Carlotinha, que eu jurava terem sido batizadas assim pela minha mãe (que então tinha a mania de cantar músicas que eu também jurava terem sido inventadas por ela, mas isso é outra história). E sim, já sabíamos que as mangas eram da natureza, e por isso cravávamos os dedos casca adentro e comíamos as Carlotinhas lá no topo das árvores, e deixávamos o líquido laranja escorrer, e chupávamos o caroço, e às vezes até o roíamos um pouquinho até sentir os dentes cheios de fiapos. E se desse preguiça era só sacudir um pouco os galhos que caíam as mangas, e tinha dias em que nem precisava e que descobríamos as frutas esparramadas pelo gramado, ou entre os dentes dos cães sortudos que as atacavam com igual prazer.
As mangas em abundância viravam uma sorte de produtos que comíamos depois do almoço: sorvete, suco e doces que a minha avó preparava, e que lotavam o freezer e a geladeira, e todos tão naturais que nos restavam fiapos nos dentes também.
Difícil mesmo, e bem mais complicado que gostar de goiaba ou alcançar as amoras, e bem mais saborosa que qualquer manga, era a tangerina. Eu nunca me conformei com a sazonalidade da tangerina, e vivia perguntando se já estava na época. Janeiro, fevereiro, março, abril, maio, todo mês eu perguntava, na esperança de que algo pudesse ter alterado o curso da tangerina na história do mundo, ao menos do meu mundo. Pra piorar, não havia pés de tangerina na casa de campo. A época de tangerina, portanto, era a mais aguardado do ano, e passava tão rápido que dava vontade de chorar. Eu perseguia o sorveteiro (Itália) na praia, e na maioria das vezes era obrigada a um confronto cruel (e suado) com a realidade: tangerina não tem, serve manga? Era tão frustrante que eu comia o sorvete de manga desbaratinada enquanto, sem querer, levava à morte por pisões meus pobres castelos de areia.
27 anos se passaram até eu dar de cara com tangerinas no supermercado em janeiro. Eu nunca cogitei que se pudesse comer tangerinas em janeiro, mais dramático, até: eu me conformei que não comeria, nunca, tangerinas em janeiro, e condicionei todo meu amor por tangerinas para a época em que elas floresciam.
De repente pareceu que eu não precisava mais gostar de jabuticabas só em outubro, e que poderia ser viável comer, sei lá, morangos em março. O gosto da liberdade, ainda que eu estivesse meio escondida atrás de uma gôndola de carnes, foi tão mágico quanto alcançar sozinha a primeira amora, tão surpreendente quanto se dar conta de que havia comido mais de cem jabuticabas em meia hora, tão delicioso quanto ter o rosto inteiro besuntado de manga, só que muito mais, como dizer, espontâneo, porque isso sim, ah isso sim: comer tangerinas no supermercado em janeiro foi uma enorme transgressão.
sexta-feira, janeiro 22, 2010
segunda-feira, janeiro 18, 2010
Aprender a ser só
O banheiro, outrora abrigo constante de borboletas, hospeda agora gordos mosquitos que não saem de lá nem às custas de SBP, e em algum lugar do quarto, provavelmente atrás de todas as coisas empilhadas, eles fazem casa também: minhas pernas indicam que ando pela selva. E não pode ser coincidência que o autor do livro que agora leio seja a) escritor de um personagem que é igualmente devorado por mosquitos, b) filho da Sophia de Mello Breyner Andresen, c) português, d) narrador de solidões.
Sei que parece impossível sentir solidão com tantas picadas de mosquito, e que é incongruente isso em janeiro, inexplicável, até. Mas sim, me acomete às vezes sentir uma que parece pior que todas as outras, que dá junto com uma saudade desconjuntada de pertencer a algumas vidas que me deixaram de lado, que vem junto com o balanço de mar em praia lotada, que me angustia tanto quanto boiar sem óculos e, portanto, sem saber ao certo a distância das ondas que a qualquer momento podem me engolir.
E são tantas as solidões que me aparecem, não só as minhas, mas as de pessoas que eu pensei que pudesse consolar, as de gente que eu achava que sabia ouvir, as de amigos que eu jurava que se soubessem acolhidos por aqui, e as de finais tão fortemente anunciados que só podiam ser mentira, e que não eram, e ai que dor.
Solidão de filme de ficção, de capa de revista semanal, das manchetes, das missas, de mais de quinhentas páginas na mesinha de cabeceira, de acordes e ritmos lentos que se demoram mais que o sol, e uma certeza de ser tão só que escorrem lágrimas genuínas de pequenos roxos que se acumulam nos joelhos.
Logo passa. É verão e já se fala em carnaval, já se pensa em fantasia e nas irresponsabilidades consentidas, nos disfarces e máscaras necessários, nas serpentinas e alegrias já tão treinadas que aplacam chororô, pelo menos até a quarta-feira de cinzas. Até lá, aumentar a lista de resoluções de ano-novo: 1) evitar as pancadas no box do chuveiro, 2) entender o final das coisas, 3) tomar complexo B ou mudar a marca do spray repelente, 4) jamais entrar no mar desacompanhada.
Sei que parece impossível sentir solidão com tantas picadas de mosquito, e que é incongruente isso em janeiro, inexplicável, até. Mas sim, me acomete às vezes sentir uma que parece pior que todas as outras, que dá junto com uma saudade desconjuntada de pertencer a algumas vidas que me deixaram de lado, que vem junto com o balanço de mar em praia lotada, que me angustia tanto quanto boiar sem óculos e, portanto, sem saber ao certo a distância das ondas que a qualquer momento podem me engolir.
E são tantas as solidões que me aparecem, não só as minhas, mas as de pessoas que eu pensei que pudesse consolar, as de gente que eu achava que sabia ouvir, as de amigos que eu jurava que se soubessem acolhidos por aqui, e as de finais tão fortemente anunciados que só podiam ser mentira, e que não eram, e ai que dor.
Solidão de filme de ficção, de capa de revista semanal, das manchetes, das missas, de mais de quinhentas páginas na mesinha de cabeceira, de acordes e ritmos lentos que se demoram mais que o sol, e uma certeza de ser tão só que escorrem lágrimas genuínas de pequenos roxos que se acumulam nos joelhos.
Logo passa. É verão e já se fala em carnaval, já se pensa em fantasia e nas irresponsabilidades consentidas, nos disfarces e máscaras necessários, nas serpentinas e alegrias já tão treinadas que aplacam chororô, pelo menos até a quarta-feira de cinzas. Até lá, aumentar a lista de resoluções de ano-novo: 1) evitar as pancadas no box do chuveiro, 2) entender o final das coisas, 3) tomar complexo B ou mudar a marca do spray repelente, 4) jamais entrar no mar desacompanhada.
Assinar:
Postagens (Atom)