(trilha sonora sugerida:
Get me Away From Here I'm dying, Belle and Sebastian)
Já faz alguns anos desde que me instalei nessa casa que ainda acho que é nova. Sempre morei noutro lugar e não estabeleci uma relação de tempo confortável com nenhum dos endereços. Acho que já estou aqui há tempo suficiente pra ir embora, parece que saí do outro apartamento numa vida anterior, porém quando me acho por lá, não sei. Não chamo mais nenhum dos lugares de lar, faço planos de pintar as paredes e arranjar novas mesas e quadros, mas deixo pra depois porque algo me levou a crer que ambos os CEPs eram temporários.
Divagações à parte, eu pensava neste 102 de agora e em como, um dia que não sei precisar, abri as portas do armário de sapatos e vi uma fina camada esverdeada que cobria tudo. Não chegou a ser uma surpresa. O cheiro dos outros armários denunciava que a umidade por aqui era maior que no resto dos lugares, e isso eu percebia toda vez que me vestia para sair e sentia certo calor na rua. A sensação térmica do meu apartamento e o aroma duvidoso que começava a se impregnar nas roupas deviam ter sido alertas suficientes pra correr para a corretora mais próxima, ligar para o Procon ou, no mínimo, traçar um plano de combate ao mofo, que começava a dar provas de seu caráter implacável.
Eu ainda não conhecia todos os paradoxos da umidade, e tudo o que sua presença neste apartamento implicaria: restaurações, zelo, nostalgia, desapego, faxina, anti-histamínico.
Numa linha do tempo imaginária, diria que a minha personalidade ficou marcada pelas sucessivas vezes em que abri as portas do armário dos sapatos e, esperança em punho, fui vencida pelos fungos que se apoderavam da minha coleção de sapatilhas. Usasse substantivos para descrever cada fase da minha luta contra o mofo, começaria por ingenuidade. No meio caberia um breve período de êxtase, seguido de meses intermináveis de desespero, e por fim, rendição.
A era da ingenuidade durou pouco, felizmente. O otimismo que veio junto com a pilha de Secar e Pingu adquiridos no supermercado durou o tempo que os potes com cloreto de cálcio demoraram pra absorver a umidade dos armários e quase transbordar: 24 horas. Entendi que teria de pegar em armas mais pesadas e comecei a desprezar os conselhos de gente pacifista que achava que fórmulas como água morna e vinagre poderiam trazer algum tipo de benefício aos meus calçados. Iniciei um período de intensas pesquisas e limpezas, e quando voltei a acreditar que seria possível vencer a praga que começava a se alastrar para as bolsas e jaquetas, me deparei com algo que fez toda a minha crença tombar por terra: os álbuns de fotos começavam a ser tragados pelos fungos.
Boquiaberta (atrás de uma máscara cirúrgica que amenizava a aspiração de ainda mais ácaros e afins), folheei álbum atrás de álbum e comecei a ver sorrisos derretidos, abraços grudentos e afetos estragados. Diversas imagens 10 X 15 se agarravam aos plásticos dos álbuns de retrato e fundiam-se neles para jamais saírem dali, tumbas definitivas para lembranças que eu não queria esquecer. Eu me sentia derrotada. A umidade começava a destruir não apenas as coisas de verdade, mas também um passado organizado, feliz e seco de gente que agora mofava nas minhas prateleiras.
A fase mais radical e prolífera da batalha começou com essa constatação, com a chegada do inverno e de uma máquina que impunha respeito no meu quarto, diagnosticado como o ponto mais úmido da casa. Um desumidificador vinha pra ridicularizar ainda mais qualquer tentativa anterior de salvar meus pertences do aspecto aveludado que o mofo conferia a tudo. Segui rigorosamente as instruções da máquina que anunciava um novo tempo e fui acordada por apitos da mesma, por volta das duas da madrugada: ela atingira sua capacidade máxima de absorção, e me presenteava com cerca de 5 litros de água armazenados em seu compartimento. Esvaziei a máquina e começamos de novo. Às 10 da manhã, mais apitos. Durante uma semana a rotina de despejar a água na varanda se repetiu à exaustão. O sorriso ao abrir as portas dos armários também. O desumidificador era mágico, eu era feliz e me deixei levar por esses dias em que deitei de lado os panos e materiais de limpeza. Naquele inverno comprei uma jaqueta de couro e planejei dominar o mundo: eu ia convencer os moradores da minha rua e de outros focos de mofo da cidade a comprarem a mesma máquina que eu, e juntos iríamos desumidificar nossas casas e produzir água. Comecei a armazenar litros e litros de água e já previa as manchetes dos jornais, anunciando mega obra para construção de dutos que levariam nossas águas para abastecer diversos locais necessitados. Eu seria líder do movimento “água para todos”, cogitava até virar mártir porque certamente a minha empreitada geraria tramoias, crimes e sangue.
Minha derrocada começou justamente aí. Tomada pela megalomania que meu plano exigia, comecei a desencanar dos fungos, das sapatilhas, das fotos e de tudo o mais que estava à minha volta. Ocupei-me de tal forma em reaproveitar a água produzida que esqueci dos cuidados que o meu ambiente pedia. A primavera terminava, eu escrevia cartas para as autoridades, me inscrevia em editais e estava cega à vingança silenciosa que a umidade tramava. O destino não é criativo e a treva se abateu sobre mim da mesma forma que outrora, ao abrir as portas do armário de sapatos. Mas já era tarde, eu subestimara a natureza e comecei a cavar minha sepultura quando, ao me deparar com a camada esverdeada que cobria as sapatilhas, espirrei compulsivamente. A sentença era clara: eu estava alérgica e descalça.
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Uns sugeririam budismo, e teria sido o momento propício de me agarrar à fé, já que tive de me desfazer de metade dos sapatos. A jaqueta de couro, argh, teve o mesmo destino. Eu simplesmente não tinha mais ânimo, coragem ou estômago pra limpar ou salvar minhas roupas. Os paradoxos se estabeleciam. Eu praticava o desapego.
Guardei as energias para as fotos, que limpava com ardor. Tirei todas as impressões de dentro dos álbuns, arejei, sequei, testei todas as técnicas e os conselhos que me foram dados: cânfora, carvão, giz, vinagre, por momentos me julgava ingênua de novo, pobrezinha, tive até pena de mim. Acreditei ter salvado os retratos, respirei aliviada depois de uma sessão de nebulização.
Eu segurava o telefone com uma das mãos enquanto esperava a secretária do alergista encontrar o melhor horário para mim. Eu tentava alinhar os quadros nas paredes com a mão livre quando um grito de horror se libertou da garganta. As litografias apresentavam os sinais da peste. O mofo arrebentava lacres, vidros e varria tudo: os cds mofavam, os livros, os dicionários, as revistas.
Estabeleci uma rotina de faxinas minuciosas. Pedi demissão. Terças e quintas eu me dedicava aos armários de roupa e sapatos. Segundas e quartas eu limpava fotos, músicas, páginas e páginas de poesia. Inevitavelmente, enveredei pelas rimas pobres onde amor só combinava com dor. Aquele ritual de abrir baús e caixas e se deparar com o passado começou a me assombrar. Os términos de namoro, as amigas que se afastaram, de repente me via discutindo relações remotas com gente que me olhava com desconfiança, porque eu começava a reviver aqueles dias e paixões sepultadas pelo tempo. A umidade me tornou nostálgica de um jeito irreversível. Eu queria seguir adiante, me libertar dos fantasmas, mas eles voltavam duas vezes por semana: verdes, bolorentos, mas ali, imortalizados em sorrisos quase apagados e que por isso mesmo se tornaram inesquecíveis. Fixei na minha mente todos aqueles rostos, encomendei um carregamento de ginko biloba e revistinhas de palavras-cruzadas. Eu só podia contar com a minha memória. Meu coração, tomado pela pieguice e pela lógica que consumia tudo o que morava comigo, começava a mofar também.
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Foi um período de contradições e gastos extraordinários. As litografias foram recuperadas e os livros também, embora alguns versos tenham ficado para sempre incompreensíveis. Me desfiz das revistas e dos dicionários, com suas tendências e ortografias superadas. Aproveitei a promoção da Zara e repus alguns dos sapatos. Tentei baixar meu nível de exigência, mas até as Havaianas pareciam contaminar-se do mofo, de modo que continuei comprando sapatilhas.
A umidade alterou meus hábitos, minha saúde, meu mundo material. Ao mesmo tempo em que desenvolvi T.O.C., por motivos mais que óbvios, comecei a me sentir à vontade em ambientes não aprovados pela Vigilância Sanitária. Albergues, motéis, banheiros públicos, não que eu frequentasse qualquer um desses espaços, ganharam meu voto de confiança. Minha alergia galopante consumia caixas e caixas de Allegra D e lenços de papel, e minha congestão ininterrupta me fez parar de fumar, questão de sobrevivência. Minha vida social sofreu abalos profundos. Ocupada que estava em salvar minhas coisas, parei de sair, de telefonar, de ver o mundo. Eventualmente ia à praia, onde me esturricava pra ter certeza que toda e qualquer umidade agarrada à minha pele se evaporaria em questão de uma tarde. Funcionava, eu acho. Nesses dias eu retomava minha juventude, encontrava pessoas, combinava programas, confessava saudades. A reciprocidade, porém, foi diminuindo à medida que todos percebiam minhas obsessões.
Quando, um ano depois da restauração das litografias, percebi novamente os sinais dos fungos ultrapassando as molduras e vidros preparados com material anti-mofo, joguei a toalha. E joguei fora fotos, livros, discos e uma sorte de objetos. Eu já não controlava o tempo que envelhecia precocemente tudo, eu estava apática e pálida, cansada. Concluí que essa casa nunca seria minha porque todo o espaço ali estava tomado por essa força capaz de afundar tudo. Numa fúria mais intensa que os estragos provenientes do mofo, joguei o pouco que sobrava pela janela. Chorei por três dias e três noites, liguei o desumidificador, produzi piscinas de água, decretei vitória ao inimigo e enfim, encontrei um CEP seco, livre desta merda chamada umidade: comprei passagem só de ida para Brasília.