Às vésperas de completar
um ano de natação, percebi que, en fait,
fazia quase dois meses que minha rotina aquática consistia em ir a uma aula e
faltar a três: a lógica de uma respiração a cada três braçadas, adotada no estilo
crawl, rompeu as fronteiras das raias e instaurou-se nas manhãs de segunda e
quarta. Quando me dei conta disso, sentei, ponderei, calculei: meu maiô
carcomido precisava ser descartado, o plano trimestral renovado, a fé no
esporte restabelecida. Durante duas semanas (nas quais, obviamente, dormi mais
do que nadei) só pensava no que fazer, no que poderia substituir tal atividade,
no que poderia me fazer feliz, em como seria minha vida sem essas manhãs
molhadas, e percebi que, qual um poema de Manuel Bandeira, a natação varria
tudo: eu roia unhas, chacoalhava os pés, encharcava o cabelo de cremes,
aproveitando os dias sem cloro enquanto tentava restaurar os cachos castigados
pela química, e a minha vida ficava cada vez mais cheia de água.
Seguindo os mesmos
impulsos que me fizeram mergulhar no mundo natatício pela primeira vez, e tendo
como norte uma existência sem contraturas musculares, sem hérnia de disco, quiçá
sem dores nos joanetes, o que saboreio desde que toda a saga começou, joguei o
velho maiô no lixo e adquiri uma lycra Speedo, pois que me sinto perfeitamente
apta a ostentar, não mais apenas um figurino, mas um estilo de vida. E cruzei
três cheques. E então, como numa novela onde a mocinha só é feliz no último capítulo,
eis que três novos personagens cruzaram meu caminho. Na verdade, cinco. São eles:
1)
O maiô Speedo.
O maiô Speedo foi comprado em meio a uma conversa telefônica com alguém por
quem talvez eu esteja perdidamente apaixonada, o que já confundiria toda e
qualquer decisão. Além disso, o pós compra do maiô Speedo consistia numa enorme
tigela de sopa de tomate e queijo gruyere em excelentes companhias que já me
aguardavam no restaurante. Ou seja: não experimentei o maiô Speedo, e a ao
chegar em casa cortei as etiquetas, lavei o maiô, pendurei pra secar. Quatro
dias depois, às 6h15 da manhã, concluí que o maiô Speedo não cabia em mim. Eu já estava de pé,
rosto lavado, café da manhã tomado. Lá fora ainda estava escuro, lá dentro eu
me atochava num maiô que era um número a menos. E assim fui nadar, socada em
elastano, o breu no mundo.
2)
O breu no mundo. É maio, ficou frio, é antes das sete da manhã. Qualquer pessoa com amor
próprio pensaria “what the fuck”.
3)
“What the fuck”,
diz a voz interna que se faz cada vez mais nítida toda vez que o novo professor
de natação conversa, e ele conversa muito, e ninguém me avisou que haveria uma
troca de instrutores, o que teria catapultado a minha (agora percebo)
teimosia em permanecer nesse (agora entendo) suplício. O novo
professor de natação usa chinelo crocs, sunga, camiseta e uma touca pendurada
na cintura. Ele depila as pernas. Ele teoriza sobre o fato de que não é a natação
que deixa as pessoas gripadas, é esse entrar e sair da água. Ele filosofa sobre
uma pixação que por anos habitou um muro na Gávea – “pra que o medo se o futuro
é a morte” – afinal, “a única certeza que a gente tem é que vai morrer”. Breu no mundo. Maiô apertado. 6h40 da manhã.
4) Do outro lado da raia vem nadando a todo
vapor, depois de uma “virada olímpica” na margem, uma mulher que logo julgo ser
exibicionista, insegura, egocêntrica e carente. Ela nada golfinho como se
treinasse pras Olimpíadas de Londres, eu me encolho em meu humilde crawl, mas é
batata: a mão esquerda dela me estapeia. Choro dentro dos óculos de natação,
dou meia volta ao chegar na borda oposta pra evitar o professor, penso em fazer xixi na água só de
raiva da mulher nadando golfinho.
5)
No vestiário,
depois da aula, o dia já está claro, já são 7h30, luto pra tirar o maiô, penso “what
the fuck”, penso em cortar as alças do meu Speedo preto, penso em sustar os
cheques, em comprar uma bicicleta ergométrica, em entrar na yoga, em fazer um
curso de meditação, em comprar 10 latas de sopa Campbells, e, quando estou
saindo, passo pela senhora que nada antes de mim e que agora seca seus cabelos, e
que diz “você é muito rápida, já nadou, já saiu e eu aqui ainda secando os
cabelos”. Não seria um problema, mas ela repete a mesma frase, duas vezes por
semana. E ainda que já passe das 7, e ainda que eu nem respondesse, mas assumi
meu papel e digo “mas eu não tomei banho”, ao que ela responde “ah, vou contar
pra todo mundo!”, ao que saio correndo, maiô no saco, minha pele marcada pelo
elástico do modelito PP (embora fosse M) que não me veste, meu desespero, minha
sede, meu cansaço.
Uma
das minhas músicas preferidas dos últimos meses, e que é a única que conheço do
Grateful Dead, toca em looping na minha cabeça, e já a culpo pela minha permanência
estendida na natação: and it’s just a box
of rain. Me apeguei a essa máxima. É só uma caixa de chuva, que mal pode fazer? Mas no fundo eu
sei que é muito mais que isso. Hoje, voltando pra casa, confesso: me deu
saudade do Carlão.