Não passa de três semanas
a data do email da professora de literatura em que ela dizia ter gostado muito
do meu pequeno trabalho acadêmico, por sua vez enviado cerca de um mês antes da
nota 10 que me chegou via gmail. Desconfiei um pouco dos critérios dela, porque
no fundo sabia que haveria trabalhos bem mais relevantes que o meu, mas sorri
assim mesmo: a nota 10 me tornava oficialmente uma cdf, e justificava as
semanas, até mesmo meses, em que vivi uma vida regrada onde quase não havia
espaço para refrigerantes, carne vermelha ou badalações. Tudo isso e um outro
10 na disciplina de artes visuais me levaram a uma rotina reclusa, e foi
preciso entrar de férias para perceber a presença de um novo porteiro da noiteno prédio.
Eu chegava de taxi de um
jantar que me deixou apaixonada por polvo, e um tanto embriagada por causa de
duas ou mais jarras de sangria. Desconfio que dois goles de cerveja já teriam
sido suficientes para aquele levitar do álcool, frente à abstinência
autoimposta dos meses precedentes. Fato é que, antes que eu pudesse encontrar
minhas chaves no fundo da bolsa, o novo porteiro da noite abriu a porta para
mim. Não era um horário extravagante, confesso, mas já era hora dos bêbados
voltarem aos lares, o que automaticamente significava que porteiros da noite
estariam adormecidos. Fiquei surpresa, mas julguei que aquela era a primeira
semana de trabalho do novo funcionário. Ao me informar sobre o assunto, descobri
que o novo porteiro da noite assumira o cargo bem antes do que eu pensava, e já
completava seu segundo mês ali. Blame it on literatura, pensei. Meu argumento
era mais que justificável pro meu total desconhecimento do novo porteiro da
noite.
As férias seguiram
animadas, e cada vez que cheguei à portaria depois da meia-noite me surpreendi
com o fato do novo porteiro da noite seguir sempre alerta. Foram inúmeras as
vezes que saí do taxi ou da carona com as chaves na mão, eventualmente até
mesmo com os sapatos na mão pra não acordar o homem, e lá estava ele: de olhos
bem abertos, acionando portas, dando bom dia, chamando o elevador. Sem me dar
conta, apliquei um teste à resistência do porteiro da noite, chegando em casa
cada vez mais tarde. Tão tarde, às vezes, que o turno já havia sido trocado e
eu dava de cara com o porteiro da manhã.
O fato do novo porteiro da
noite não dormir alterava a ordem das coisas a tal ponto que fiquei
ligeiramente obcecada. Toda vez que alguém me dava carona até em casa eu puxava
assuntos com a pessoa, a fim de ficarmos estacionados em frente ao prédio, pra
que eu pudesse observar o comportamento do porteiro, pra que eu pudesse flagrá-lo
acordando. Eu não me conformava, e nesse exercício de arranjar cúmplices,
acabei arranjando alguns beijos também, porque os meninos começaram a
interpretar essa minha demora em sair do carro como uma tentativa de sedução,
mesmo que eu explicasse toda essa história de novo porteiro da noite. Tava na
cara que isso só fazia sentido pra mim.
Quando as férias
terminaram, descobri duas coisas: todo mundo tinha tirado 10 nos trabalhos de
ambas as disciplinas da pós-graduação, o que foi um balde de água-fria em 14
pessoas. A segunda coisa é que tinha havido uma mudança de síndico no prédio, e
que ele pensava em eliminar o porteiro da noite, não só o novo, mas a função em
si, a fim de corte de gastos. Convocou-se uma reunião extraordinária em que
defendi com unhas e dentes a permanência do porteiro da noite, especificamente
daquele, que àquela altura só me via chegar de taxi, porque ninguém mais agüentava
minha conversa nonsense na porta do prédio, e porque meu ritmo de estudos
recomeçava. Em breve, eu nunca mais veria o novo porteiro da noite até
dezembro, porque estaria estudando feito louca pra manter meu c.r., mesmo que
ele fosse um embuste.
Logo depois da assembléia que votou a favor da permanência do porteiro da noite, assegurado
de seu emprego, o novo porteiro da noite sucumbiu: tirou um cochilo justo quando
esqueci de levar minhas chaves.