"Procurei na internet algumas breves citações de Ortega y Gasset, que por algum tempo tinha pensado que eram duas pessoas distintas, como Deleuze e Guattari ou Calvin e Hobbes."
Ben Lerner, Estação Atocha (Rádio Londres, 2015)
Naquela noite sentamos para conversar e tomar chopes como
há muito não fazíamos, num bar que já não tem mais os azulejos beges que
ficaram eternizados nos retratos que B. fazia toda vez que vinha ao Brasil,
cada um de nós desprevenido no momento em que uma mão gesticulava e saía
borrada na foto, ou quando atirávamos as cabeças para trás para gargalhar
melhor.
Naquela noite eu tinha uma pequena lista das coisas que
finalmente havia feito, como se a cada despedida um gatilho se acionasse e eu
colocasse em dia os planos que deveriam ter sido realizados a dois, mas que por
falta de tempo, sorte ou qualquer outra razão acabaram adiados até a
impossibilidade, e listei mentalmente alguns deles achando que seriam novidades boas para contar, mas eles não fariam ideia e eu não tinha muita certeza de poder explicar.
Naquela noite falamos muito sobre como trilhar caminhos, e
lembrei-me de uma cena corriqueira na infância: na rua detrás da casa de campo
havia sempre fileiras de formigas enormes a empinarem folhas e pequenos pedaços
de flores, caules e afins, num andar trôpego típico de quem carrega muito peso.
Agachada, eu observava aquele trabalho ordenado, pequeninos pontos verdes, cor
de laranja ou rosados marchando lentamente pelo solo de terra. Aquele pequeno exército em zigue-zague parecia bem mais confiante que nós, dando cabeçadas em imprevistos e numa travessa de frituras, eventualmente caindo em buracos.
Naquela noite, enfim, tomei coragem e contei a eles que havia terminado um
romance, e o fiz tentando segurar as lágrimas, e eles brindaram
imediatamente porque entenderam tratar-se de um livro. Eu ri e rapidamente inventei um enredo meio melancólico, uma história de desencontros, cravos e uma cidade alemã, e morri de tristeza ao ver o banheiro reformado, limpíssimo, asséptico.
Mas doído mesmo foi chegar em casa, abrir a
geladeira e comer jabuticabas saídas de uma caixa poluente e com códigos de
barras, em vez de esticar os braços e arrancá-las das árvores daquela casa que
em sonhos sempre parece que ainda é minha.