segunda-feira, setembro 28, 2015

Formigueiro


"Procurei na internet algumas breves citações de Ortega y Gasset, que por algum tempo tinha pensado que eram duas pessoas distintas, como Deleuze e Guattari ou Calvin e Hobbes."
Ben Lerner, Estação Atocha (Rádio Londres, 2015)


Naquela noite sentamos para conversar e tomar chopes como há muito não fazíamos, num bar que já não tem mais os azulejos beges que ficaram eternizados nos retratos que B. fazia toda vez que vinha ao Brasil, cada um de nós desprevenido no momento em que uma mão gesticulava e saía borrada na foto, ou quando atirávamos as cabeças para trás para gargalhar melhor.

Naquela noite eu tinha uma pequena lista das coisas que finalmente havia feito, como se a cada despedida um gatilho se acionasse e eu colocasse em dia os planos que deveriam ter sido realizados a dois, mas que por falta de tempo, sorte ou qualquer outra razão acabaram adiados até a impossibilidade, e listei mentalmente alguns deles achando que seriam novidades boas para contar, mas eles não fariam ideia e eu não tinha muita certeza de poder explicar.

Naquela noite falamos muito sobre como trilhar caminhos, e lembrei-me de uma cena corriqueira na infância: na rua detrás da casa de campo havia sempre fileiras de formigas enormes a empinarem folhas e pequenos pedaços de flores, caules e afins, num andar trôpego típico de quem carrega muito peso. Agachada, eu observava aquele trabalho ordenado, pequeninos pontos verdes, cor de laranja ou rosados marchando lentamente pelo solo de terra. Aquele pequeno exército em zigue-zague parecia bem mais confiante que nós, dando cabeçadas em imprevistos e numa travessa de frituras, eventualmente caindo em buracos.

Naquela noite, enfim, tomei coragem e contei a eles que havia terminado um romance, e o fiz tentando segurar as lágrimas, e eles brindaram imediatamente porque entenderam tratar-se de um livro. Eu ri e rapidamente inventei um enredo meio melancólico, uma história de desencontros, cravos e uma cidade alemã, e morri de tristeza ao ver o banheiro reformado, limpíssimo, asséptico.

Mas doído mesmo foi chegar em casa, abrir a geladeira e comer jabuticabas saídas de uma caixa poluente e com códigos de barras, em vez de esticar os braços e arrancá-las das árvores daquela casa que em sonhos sempre parece que ainda é minha.  


Nenhum comentário: