Está enganado quem pensa que o aleijado não sabe nada das
sanhas do corpo. Somos nós, os mancos, os malformados, os amputados, os obesos
e minúsculos, os alérgicos, os hemofílicos, os hemiplégicos, para, tri e
tetraplégicos, os anões, os albinos, os sempre-gripados, a legião inteira de
indivíduos salvos da seleção natural pela compaixão humana, somos nós que
entendemos a glória dos músculos e tendões, as minúcias da troca de calores.
(Tantas vezes imaginei jogar bola, brigar de galo, tacar pedra em vidraça!) O
corpo sadio que nos falta foi refeito tantas vezes em sonho que somos capazes
de inventar um novo corpo, um corpo além, um corpo além de lindo, um corpo de
Cristo, mas de pele tão firme que a coroa de espinhos não feriria e os pregos
não conseguiriam perfurar. Imagina quão mais belo teria saído o Davi se
Michelangelo não tivesse os braços. E a Vênus de Milo.
Victor Heringer em O amor dos homens avulsos (Cia das
Letras, 2016)
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