Conversávamos sobre nossos livros e ele falou do perigo
que é quando as pessoas reais se deparam com os personagens, ficções às vezes
próximas demais de certos fatos, talvez até mesmo de certos nomes, e vislumbrei
um momento em que, quem sabe, eu pudesse contar a ele da angústia que é quando
essas ficções acabam por me paralisar – reavalio meus métodos, e percebo que são os piores possíveis. Mas não falo nada,
apenas concordo, e gargalho quando ele conta uma história que de tão
inverossímil parece um conto do Keret. E nos encontramos outra vez aí, nas ficções
de terceiros que nos fazem querer um pouco daquilo, sem ter ideia se esses
escritores também passam pelo que passamos, os julgamentos, as confusões, as crises
que nos fazem querer desistir.
Eu digo, então, que num documentário do Netflix a Joan
Didion afirma – a partir de um texto em que descreve o hotel havaiano no qual
está hospedada com marido e filha, embora achasse que devesse mesmo era pedir o
divórcio – que o marido não só leu o texto, como o editou. Tudo isso ela fala como
se fosse óbvio, como se as pessoas reais suportassem a ideia de se ver em
letras sem objeções, frustrações ou mágoas, mesmo que, eventualmente, se tornem
bundas nas ficções. O entrevistador, então, pergunta qual era o contrato entre
o casal? Por que tornar pública a intimidade? E Didion responde, no mesmo tom,
talvez fazendo um gesto com seus braços e mãos tão finos, envelhecidos, quiçá
retorcidos por artrite ou artrose, nunca sei: não havia contrato. Nunca houve
contrato. O que havia era o entendimento mútuo de que cada um usava o material
de que dispunha, e aconteceu d’ela ter aquele material – o hotel havaiano em vez
do divórcio, e a plena consciência disso.
Mas é a Joan Didion quem diz, com todo o peso de seu nome,
sua obra, suas perdas, seus dedos finos e retorcidos, seus dentes amarelados e
fotos nas quais aparece de óculos escuros durante toda a cerimônia de seu
casamento. Sabemos que estamos distantes dela e dessa autoridade, e começo a me
perguntar se a mesa entre nós, e um certo tempo de ausência, agravam a minha
dúvida a respeito dessa noite, tão diferente daquela primeira em que, com certa
audácia, ele perguntou se corria o risco de se tornar um personagem do qual,
talvez, não gostasse, ou um que não aprovasse, e a pergunta, ele a fez enquanto
se levantava, dava a volta na mesa e vinha para o meu lado, para me beijar. Mas
dessa vez tudo demora mais, talvez porque estejamos bebendo chá, e não cerveja,
e conto a ele que Didion tomava Coca-Cola no café da manhã, ao que ele torce a
cara, porque não toma Coca-Cola desde os 10 anos.
Ou vai que é por causa daquilo, do tempo de duração dos
intervalos, do meu não entender, da minha recusa em perguntar, da minha vontade
que tudo fosse outra vez como aquela primeira noite, depois da qual pensei que se
as coisas desandassem, como sempre acontece, eu mudaria de analista. Eu não
teria mais condições de repetir sempre a mesma história, quem sabe se mudando o
ouvinte, sei lá, as ficções também começassem a se transformar noutra coisa.
Dessa vez ficamos um tempo abraçados, meus óculos meio
esmagados e embaçados contra o pescoço dele até que tudo, então, começou a se
parecer, de novo, com o que eu queria.