sexta-feira, fevereiro 02, 2007

708.

Deu um fim em todas as comidas que tinha em casa. Encarregou-se dos iogurtes e do sorvete que estava pela metade. Deu a carne congelada ao vizinho, que levou também os queijos. Tomou o ônibus pra Gávea onde morava um amigo e juntos tomaram as 5 latas de cerveja que ele ainda tinha. Era janeiro e não pode ligar o ar-condicionado naquela noite e não poderia nas próximas 29 seguintes. Acordou de ressaca e suado, o dedão do pé ensangüentado, a mesinha derrubada, livros e luminária no chão. A bateria do ipod acabou no terceiro dia e ele imediatamente entendeu que esse seria o seu maior contratempo durante os próximos 27 dias. Em pouco tempo a bateria do celular teria o mesmo destino. No quarto dia comprou um relógio antigo. Arranjou uma caixa onde guardou a televisão e colocou o grande relógio no local do aparelho. Assistia as horas como quem contempla o horizonte e pouco a pouco foi tomado inteiramente pela idéia de viver sem eletricidade. Suas mudanças cotidianas atingiram níveis drásticos. Comprou um pequeno isopor onde mantinha garrafas de água. Encaixotou o computador e pôs a caixa na prateleira mais alta onde não havia possibilidade de topadas ou tropeços. Em apenas 6 dias havia chutado móveis a ponto de quase perder a unha do dedão. O vizinho do 709 o acudia sempre que ouvia seus gemidos e tentava persuadi-lo do plano. Idéia mais sem cabimento, ele dizia. Não lhe dava ouvidos. Depois da primeira semana comprou uma máquina de escrever. Queria relatar os pormenores de sua nova rotina. A máquina ocupava agora o lugar que antes fora do computador. Ficava ao lado do relógio antigo. Uma pilha de papel estava sempre à disposição, alguns com resquícios de cera de vela, que por sua vez estavam em toda parte: na mesinha, sobre a geladeira, na pia do banheiro, perto do relógio, junto à janela. O único lugar pra onde não carregava velas era o closet, o que acabou por lhe custar risos dos pedestres que giravam as cabeças para ver melhor aquele sujeito que vestia calças e camisas tantas vezes descombinadas. Virou piada entre os amigos quando estes começaram a receber suas cartas. Eram cartas escritas à máquina, descrições minuciosas de seu novo estilo de vida, detalhes importantes de como fazia a barba, de seus longos banhos de banheira quando lia páginas e páginas dos livros que comprava em sebos, enfim, suas cartas eram como suas confidências, suas descobertas de pequenos prazeres há tanto esquecidos. Passou a beber vinho, que não precisava gelar e seus lençóis e roupas manchavam com a mesma facilidade com que topava os pés na primeira semana. Em três semanas seu ritmo foi mudando: andava a passos vagarosos, quase não via os amigos e movia-se como um pêndulo. Quem entrasse em seu pequeno apartamento veria ali um cenário: a máquina de escrever e o relógio lado a lado, as ceras de velas que cobriam parte dos móveis e davam ao lugar certo ar sinistro, os livros que se empilhavam pelos cantos no chão e ele sentado à beira da cama trajando vestes amassadas. Tinha se transformado num personagem e em cobaia de seu próprio experimento. Ao final de um mês sua mãe fez o que ele tanto adiara: pagou a conta de luz.

11 comentários:

Anônimo disse...

hahahahahaha....Honey sensacional !!! Tava te achando muito doida, até ler o final do texto e entender tudo !!

Anônimo disse...

Que agonia!

Anônimo disse...

Nossa eu tava tensa durante a leitura... mto bom o texto!!

Anônimo disse...

ensaio sobre a sujeira..

Jubsky disse...

eu bem sei quem te inspirou!

Velma Kelly disse...

oh my!!!

Anônimo disse...

E aqui, não se escreve mais? Este blogue, dizem os leitores, não pode ficar parado...

Anônimo disse...

Concordo com o C.A.....
Texto novo já !!!

bruna disse...

sim, sim, me lembro desse. Muito bom roteiro para um curta!

Julieta disse...

ando sem assunto...

Cadu Corrêa disse...

Muito bom. Adorei. Bem visual, né? Bjão