Meu mais querido,
Eu começaria essa carta com um longo “aaahhh” muito suspirado que te faria entender metade das coisas – a preguiça de mais um sábado, a lentidão depois de quatro caipirinhas, a vontade de ficar na cama me espreguiçando e acordando repetidamente.
Sonhei que falávamos italiano, e com as mãos. Sei que o seu tempo anda inversamente proporcional ao meu, não se preocupe, são coisas breves e fundamentais que tenho que te dizer.
Despencou uma chuva por aqui, depois de muitos dias secos, a cidade ficou com aquele jeito escorregadio e abafado de março, foi impossível não cantarolar
“É a chuva chovendo, é conversa ribeira / Das águas de março, é o fim da canseira”.
Ontem falei tanto que acho até que emagreci, ou que fiquei mais bonita. E hoje falei mais ainda, no fim do dia entendi o cachorro com sua língua pra fora, devorei garrafas d’água e pus música instrumental bem alta, mas então o próximo cd no som começou, Elizeth cantava tão lindo
“Ah seu eu te pudesse fazer entender...” Às vezes acho que posso fazer qualquer um entender, e a conversa desatada de ontem foi porque encontrei alguém que, ufa!, me passou atestado de normalidade: ela sentia tudo igual. Achei que íamos nos desabotoar em choro. É claro que terminamos a noite num abraço cheio de risadas. Meio nervosas. Tipo aquelas. Você sabe.
A pele das minhas pernas descasca de tão seca, estou providenciando o conserto. Voltei a usar lentes, mas no dia seguinte é batata, fico de ressaca e não posso ver nem quadro de Van Gogh na frente. Acho que meu cabelo está morrendo. E meu braço parece catapora de tanto mosquito que anda me mordendo. A rima foi acidental. É, talvez eu não tenha ficado mais bonita coisa nenhuma. E não me arrisco a dizer que fiquei mais leve, porque posso confundir tudo e na verdade acho que eu fiquei é mais murcha. É que depois de tanta conversa e análise, ainda ficou aquela abstração que a gente guarda, entende? Nada fica apaziguado... Então as risadas nervosas. Entrei no carro e não sabia nem que música escutar. Coloquei
Unfinished Sympathy. Não é hipnotizante a voz dela? Fico alucinada.
Fui ver
Bruno Cezario de novo, e me encantei de novo, e sonhei com os pés dele de novo e de novo e de novo e sim, é verdade, voltei a dançar. Sinto que meu corpo está me dando trégua e que está disposto a reajustes. É uma conquista, não sei até quando aguenta. Daqui a uns anos vou precisar de mais RPG.
Você acredita que três bailarinas dançaram ao som da voz de Gabriel Garcia Marquez lendo uma parte do primeiro capítulo de
Cem Anos de Solidão?
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.” Comecei a reler. No fim todo mundo aplaudiu de pé, gritando “Bravo!”, foi o número mais bonito da noite. Se eu fosse um pouco cafona diria que foi mágico. Mas sabe, foi mágico mesmo.
Não me acostumo a ler estreia ou a ter ideia sem acento.
Continuo assassinando borboletas no banho. Não é culpa minha. Elas invadem o box, e são tão pequenas que acabam se afogando com os respingos que sobram pros lados. É uma catástrofe, eu sei. Mas são elas que ocupam o espaço. Outro dia apareceu um vaga-lume por aqui. O cachorro achou estranhíssimo. Ele brilhava tanto que nem sei. Me deu vontade de pique-esconde. Ou piquenique. Ou qualquer outra dessas coisas que eu sempre fazia em Penedo. Concurso de mergulhos. Brincadeira de estátua. "Mamãe posso ir?" Penedo era cheio de vaga-lumes. À noite, antes de dormir, ouço grilos lá fora. Não tenho certeza de que moro mesmo no Rio.
Bruno, o outro, voltou cheio de saudades. Ele está de barba e óculos. Mas isso é só pra você ficar com ciúme.
Assei biscoitos na casa de Maíra. Ela agora tem uma cadeira de balanço na cozinha, o que é perfeito para formar a massa do biscoito e fazer bolinhas. Ouvíamos a MPB FM e acho que foi por isso que os biscoitos ficaram meio estranhos. Ou por causa do forno que teimava em assar mais uma parte do tabuleiro que outra. A Maíra adorou os biscoitos. Mas é só porque ela não sabe que eles podem ser bem melhores.
Ando tentando gostar de muitas coisas esses dias, mas sabe o que me deixa realmente contente? Essas trocas que a gente faz, como aquele domingo de conversas em que nós funcionamos e rimos. Como a praia de hoje com ameaça de chuva e jornal compartilhado. Como a noite de ontem em que fomos sutilmente expulsas de dois restaurantes, como quando as coisas só terminam porque não têm mais pra onde ir. Tudo isso que pode se converter em inspiração, antes mesmo que a gente entenda. Parece que faz sempre sol assim.
A parte da música que mais gosto é essa
“É o projeto da casa, é o corpo na cama, é o carro enguiçado, é a lama, é a lama.” Eu nunca sei se coloco ponto final depois ou antes das aspas. Continuo recebendo mensagens que começam com “Vanessa...” e não sei como dizer que é engano. Continuo sem resposta de um email que enviei pra outra pessoa. Mas acho que a falta de uma já é tudo o que preciso. Mesmo assim dói. Acho que eu inventei tantas coisas pra mim e pra ele que acabei esquecendo de inventar um final. A gente sempre quer que as pessoas sejam diferentes do que de fato são. Algumas. Você pode ficar igual. Eu pretendo mudar algumas coisas. As pernas, por exemplo. E não falo só de hidratação. De caminhos também.
Pre-ci-so trabalhar. Estou considerando qualquer área que não seja: medicina, engenharia, odontologia. E direito. O que mais tem me tentado ultimamente é fugir com o circo.
Meu pescoço começa a falhar. Já são quase 11, estou metida numa daquelas camisetas velhas e desbotadas e gigantes. Não recusei convites para chopes porque desliguei o telefone. A única coisa que eu faria hoje seria me apaixonar. Ou receber massagem.
Me conte alguma coisa.
Sua mãe está linda no jornal!
beijos enormes e muitos,