And he stole from the rich and the poor
and the not-very-rich
and the very poor
and he stole all hearts away
Morrissey in First of the gang to die.
- Você acha que quando a gente sonha com os mortos, são eles mesmos falando com a gente?
- Acho que sim. Por que?
- Você já sonhou alguma vez?
- Nunca. Tenho medo. Toda noite antes de dormir eu rezo e peço pra nenhum deles aparecer.
- Você tem tantos mortos assim?
- Bisavô, bisavó...
- E quando você encontra a mesma pessoa sistematicamente?
- Em vida? O quê que tem?
- Você acha que Alan Kardec também tem alguma coisa a ver com isso?
- Não, acho que a gente mora no Rio e não teve verba pro elenco.
- Mas e se tiver outra razão?
- Você quer que tenha?
- Quero.
- Por que?
- Porque as coisas não podem ser tão simples e geográficas assim. Você passa dias pensando num fulano, de repente encontra o fulano três vezes na mesma semana. É muita coincidência, não acha?
- Alan Kardec não acredita em coincidências.
- Eu sei. É isso que eu to dizendo.
- Entendo. Tipo aquele cara ali de bermuda verde. Eu vejo esse cara tanto por aí que eu fico achando...
- Que tem uma razão ainda desconhecida pra vocês se cruzarem tanto, é claro!!
- Eu ia dizer que fico achando que ele tem um gêmeo ou dois. Ele é onipresente.
- O nome dele é Pablo.
- Como você sabe?
- Eu o encontro sempre também.
- Mas você conhece ele?
- Não. Mas sei que ele se chama Pablo, é ator, mora na Gávea.
- E como você sabe isso tudo? Você investigou o cara?
- Não investiguei nada, só acabei sabendo. Esse cara é o começo da minha desconfiança de que tem um mistério aí que a gente não tá descobrindo. Outro dia eu estava no cinema em São Conrado, olhei pro lado e lá estava: Pablo. Ninguém vai ao cinema em São Conrado!
- Você acha o que? Que tem um misticismo que poderia ser interpretado como “ele é o homem da sua vida”? Ou que é tudo mais triste e ele está te seguindo porque é psicótico?
- Às vezes parece que eu é que sou a psicótica e o estou seguindo. Mas não sei. Talvez ele seja o homem da minha vida. Ou talvez ele tenha gêmeos mesmo. O que me angustia é pensar que eu nunca vou saber.
- Mas você pode simplesmente ir se apresentar pra ele, ora.
- Poderia.
- Então por que não aproveita?
- Porque e se for tudo o contrário do que eu imagino?
- Mas...
- Pode perder a graça, entende?
- Pode ter muito mais graça! Ele pode ter 4 irmãos gêmeos e ser justamente o que a gente nunca encontra porque foi fazer mestrado na Sorbonne, e ele pode achar graça da abordagem e te convidar pra tomar um drink. Ou ele pode mesmo ser o Pablo-ator-que-mora-na-Gávea e te dar um folheto pra assistir a peça dele, que pode ser engraçada pacas e salvar seu domingo, ou pode ser bem caída porque ele é péssimo ator ou porque o figurino é vergonhoso. Ou ele pode ser o Pablo-ator-que-mora-na-Gávea e ser um estúpido achando que você é mais uma fã histérica que o persegue em exposições.
- Ele não tem fãs. Muito menos histéricas.
- Como você sabe?
- Ele tá sempre sozinho. Acho que é por isso que a gente o vê tanto. Ele é um andarilho que fica por aí fazendo vitrine de si mesmo.
- Mas que mania de botar solidão nos outros!
- Não é mania.
- É sim. Toda história sua tem alguém sozinho ou que perde o trem ou que sonha com mortos.
- Do jeito que você fala parece que toda história minha é composta de gente deprimida e viciada em prozac.
- E não é?
- Claro que não.
- Claro que sim! Em todos os seus casos, nunca ouvi de nenhum que a pessoa tenha perdido o trem por causa de um descontrole de gargalhada.
- Eu nem nunca te contei nenhuma história de gente perdendo trem. De onde você tirou isso?
- Do Pablo, ora! Foi só eu sugerir uma multidão de irmãos pro Pablo que você rapidamente desinventou minha versão e deixou o cara abandonado, sentado numa sala escura de projeção de slide de fotos de gente comum em que todo mundo se ama, menos o próprio Pablo.
- É você que está dizendo isso! Você tá distorcendo toda a ideia que eu faço do Pablo.
- E qual é a ideia que você faz do Pablo, então?
- Nem sei. E quer saber? Nem me interessa tanto assim o que o Pablo faz, onde está em cartaz a suposta peça dele ou qual foi a resenha que ele possa ter recebido da Barbara Heliodora.
- Ah foi, péssima, coitadinho, lembra aquela segunda-feira no Baixo? Aposto que ele estava bebendo pra esquecer...
- Debochada.
- Alto lá, foi você que começou com toda essa especulação a respeito do Pablo.
- Eu estava especulando sobre esses encontros repetidos que acontecem. Essas pessoas ficam no meu imaginário mais tempo do que eu gostaria e acabo me perguntando se elas não estão aí pra dar algum recado. Ou se é porque em algum momento eu vou começar a atuar com elas.
- Por isso te sugeri ir lá e tornar alguma coisa concreta, contracenar e, quem sabe, descobrir se ele tem uma revelação, se daqui a seis meses ele vai te pedir em casamento ou assassinar seu irmão por espancamento. Ou se ele é só alguém que tem mais ou menos a nossa idade, os nossos interesses, o nosso nível de escolaridade e o nosso tédio e frequenta os 4 lugares que ainda sobraram pra se frequentar por essas bandas.
- Você acha mesmo que o Pablo é tão básico assim?
- Nós somos tão básicas assim. Se ele for, qual é o problema?
- O problema é que aí ele não teria muito o que agregar, caso ele fosse uma pessoa destinada a agregar alguma coisa na minha vida.
- Falando assim você deixa o Pablo sem saída. Ele virou uma equação insolucionável e me parece que a única tábua de salvação pro Pablo voltar a ser alguém interessante é matá-lo.
- Você tá tratando o Pablo como se ele fosse personagem de uma peça ou de um texto.
- E mesmo assim, mesmo morto, ele poderia voltar e te assombrar num sonho onde ele explicaria que ele não passa de um ator que mora na Gávea e que sequer teve uma resenha publicada no jornal, que a performance dele nunca mereceu atenção e que ele se sente, ou se sentia, honrado com todas as possibilidades que você criava pra vida dele.
- Você criava.
- Nós criávamos.
- Por que a gente tá falando no passado?
- Porque o Pablo morreu.
- Quando?!
- Agora há pouco. Acidente de carro. As pessoas já estão comentando nas redes sociais, encontrando fotos do Pablo adolescente, do Pablo com a primeira mulher, do Pablo na muralha da China...
- Como era bonito...
- Mas estava magro demais. Quando o vimos naquela exposição achamos que ele estava doente, lembra?
- Lembro...
- Ele tinha emagrecido pra encarar um papel no cinema...
- E te prometeu convites pra pré-estreia...
- E eu perdi a pré-estreia e nunca mais falei com o Pablo depois porque você ficou com ciúmes.
- Eu não fiquei com ciúmes. Você inventou isso pra se afastar dele porque no fim concluiu que ele era meio chato.
- Quer saber? Acho que você amava o Pablo. Ele tinha um jeito de falar com você que parecia que seus olhos iam explodir de tanta luz. E você ria do Pablo, e ria com ele, mesmo ele sendo básico ou mágico ou sei lá como era a cada vez que você forjava uma novidade sobre ele. O Pablo teria gostado de saber, mesmo que fosse paixão platônica. Talvez até ele te amasse também.
Sentadas num banco no meio do mezanino do museu de arte moderna, uma delas derruba uma lágrima. Se abraçam. Descem as escadas apressadas, fazem sinal para um taxi, dão ordem de seguir até o São João Batista.