Data de agosto meu último relato sobre o novo porteiro da noite, e a proximidade do fim do mês de fevereiro por
si só já pauta o assunto evidente: a nova safra de férias escolares e o meu
reencontro com tal funcionário noturno, numa temporada estendida que atende
pelo nome de verão. Confesso, tenho encontrado mais os porteiros diurnos,
porque minha popularidade despenca, a temperatura se eleva e hay que boiar no
mar, que até ali pelo posto 12 anda com cores que mais parecem artificiais, e
ainda que band-aids, embalagens de iogurte e afins continuem lutando por um
pedaço de onda, já dá pra chamar de paraíso aquela faixa marinha. Numa próxima
vida eu quero saber pegar jacaré, tomar eventuais caldos, me virar pra segurar
as partes dos biquínis enquanto os cabelos se enchem de areia.
Deve ser desejo dos porteiros
diurnos também, derretidos pela portaria abafada e pela ineficácia do
ventilador. Notei que mudaram até a cadeira, dispensando almofadas e estofados
por um reles modelo de plástico, mais fresco, menos grudante e tais condições
climáticas e mobiliárias só reforçam a insistência do novo porteiro da noite em
permanecer acordado. Pudera.
Portanto lá estava ele: na
primeira noite de férias em dezembro, abrindo a porta do carro quando cheguei
do trabalho carregada dos livros que o patrão não queria mais, me ajudando com
as sacolas, sentindo meu bafo de chá depois de uma noite agradável na minha
livraria preferida. Também não falhou quando, dias depois, cheguei ao prédio de
madrugada, depois de um vôo latino e de dias que me deixaram subnutrida, quatro
quilos a menos para carregar as malas, que ele prontamente tirou do taxi e
alocou no elevador. O novo porteiro da noite testemunhou a minha chegada da
festa de réveillon, sóbria como nunca, depois de uma overdose de água de coco.
Testemunhou, ainda, os momentos em que mais valorizo a minha solidão: a
cantoria que faço no carro, o meu show particular pra mim mesma, uma
performance que envolve pulmões, mãos, braços e, sobretudo, a certeza de que
ninguém me escuta. Até que veio ele, sempre: o novo e eficaz porteiro da noite.
Comecei a ficar incomodada com a
mania do novo porteiro da noite de se antecipar à minha chegada no terceiro
pavimento da garagem: toda vez que eu estacionava o carro, lá estava ele,
posicionado para abrir a porta. Começou a bater um constrangimento, e uma
irritação pela interrupção que o cavalheirismo do novo porteiro da noite
causava. Pense bem: são 11 da noite, o Caetano ainda nem chegou no refrão de
“Eclipse oculto” e você tem que desligar sua música, sua voz e descer do
automóvel. Em outros prédios onde morei ou dormi, e que eram desprovidos de
porteiros da noite, eu era capaz de esperar o disco todo acabar pra subir pra
casa. Música tem dessas coisas: às vezes é preciso ouvir o grito final, o
suspiro derradeiro, os acordes últimos pra ela fazer sentido. Pra sua vida,
naquele momento, fazer sentido. Eu andava super tropicalista, e fiquei
realmente puta quando, numa quinta-feira, o porteiro abriu minha porta e a Gal
ainda nem tinha se descabelado e afirmado que era o amor da cabeça aos pés.
Mais furiosa ainda foi quando, no auge de “Back to Bahia”, eu já quicando no
banco, o porteiro se postou ao meu lado e ficou olhando pra minha cara com
aquele sorriso permanente que ele tem. Foi quando me dei conta de que o novo
porteiro da noite era meio parecido com o Russell Crowe.
Então passei a me programar pra
chegar em casa só no momento que eu julgava propício, musicalmente falando. Eu
fazia hora na esquina, diminuía radicalmente a velocidade ou dava uma volta no
quarteirão antes de entrar na garagem. Não deu tão certo, porque às vezes a
música terminava antes do tempo. A magia da cantoria automotiva ficou
seriamente comprometida com as gentilezas do porteiro da noite, a quem eu,
obviamente, passei a detestar. Depois de quase dois meses de férias, saindo
para jantar, para dançar (cof cof) e/ou para tantos outros compromissos sociais
da minha badalada vida, acertei o timing e reconquistei o prazer de deixar o
carro no G3.
Aí veio o Oscar, eu fui assistir
Les Misérables num domingo, e na sexta-feira a Anne Hathaway continuava
cantando na minha cabeça. Meu carro virou um silêncio até eu comprar a trilha
sonora do filme. Tomada pelo desespero de Fantine, engasgada da emoção dos
tempos pré-Revolução Francesa e descabelada pelo fim inesperado do antifrizz e
da volta às aulas de ballet, chorei copiosamente na primeira execução da canção
no meu Volkswagen. O porteiro da noite, a partir de então apelidado Javert, pela
semelhança já citada com o ator, e pela falta de sensibilidade, estava com
aquele sorriso, dessa vez ligeiramente mais esgarçado, segurando a porta
aberta, enquanto eu chorava lágrimas sinceras e cantava, sem acertar nenhuma
nota, a música belíssima e cortante da personagem de Anne Hathaway.
Por sorte março já se aproxima,
assim como uma monografia e uma promoção no trabalho que sinalizam que só volto
a encontrar o porteiro da noite em setembro, quando as férias de verdade
chegarão. Até lá, espero, a Anne Hathaway terá lentamente se dissipado e terei
recuperado as rédeas do meu espetáculo. Ainda assim, já penso em tentar o
Mestrado.
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