Eu limpava os óculos pela
terceira vez ao dia – e ainda nem eram 11 horas – enquanto pensava em você. Não
que eu precise de justificativas para pensar em você. Ou para limpar meus
óculos. Se você usasse óculos saberia como é: acordar, lavar o rosto, pô-los na
cara. É parecido como quando um par novo de óculos fica pronto: as lentes deste
sempre parecem melhores que as do antigo e é como se você nunca tivesse
realmente visto as coisas antes. Talvez seja que as lentes realmente melhorem.
É uma indústria, vai saber. É assim que se começa uma coleção, que numa
perspectiva positivista pode evoluir para uma obsessão. Tenho nove pares de
óculos, mas não se preocupe, a sua vista cansada não tarda.
Há um futuro interessante para
nós e nossos óculos: todo dia acordar, lavar o rosto, pô-los nas caras. Eu, pra
te ver de longe, você, pra me ver de perto, como se nunca tivéssemos nos visto
realmente antes. E aumentar as coleções: você com seus dois pares iniciais, eu
com cerca de 14 armações – uma soma de 16 possibilidades diárias e matinais para
nós. E se somarmos os reflexos das nossas imagens nos óculos um do outro
teremos uma conta que eu não sei fazer, e nós e nossos óculos e nossas imagens
refletidas – todos os dias, naquele ritual rotineiro pelas
manhãs, exceto aos sábados e domingos, dias de hibernar entre travesseiros,
peles e córneas sem lentes, indústria ou acetatos – obcecando juntos.
Pensava em você, limpava meus
óculos n° 6 e decidi tudo isso, essa sucessão de hastes, consultas
oftalmológicas, graus em declínio ou ascensão, modismos, promoções, qualquer justificativa
pra gente se ver todo dia, dormir e acordar todo dia, lavar o rosto,
pormenorizarmo-nos a qualquer distância, intermediados por vidros multifocais.
Ou cirurgias de cataratas – antes das 11 horas eu já queria toda essa vida com
você.
Um comentário:
Voce é brilhante;
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