Os elefantes, de acordo com os estudiosos do
assunto, são criaturas extremamente sensíveis, mesmo nas grossas patas.
Clarice
Lispector in A legião estrangeira
“Julia,
quando fui pra lá vi uma placa de boas-vindas indicando que a cidade tinha 3
McDonald’s. É menos do que existe no Barra Shopping!” – com esse argumento, e
não que fosse a primeira tentativa de persuasão, Lucas me impediu de confirmar
minha reserva de 5 dias no hotel Ibis de Wuppertal, cidade alemã que não figura
em guias de viagem. Tente o Fodor’s, o Lonely Planet, o Guia Visual da Folha ou
qualquer outra publicação da seção de turismo: Wuppertal não está lá.
Tente
a Wikipedia brasileira e você vai descobrir 3 filhos ilustres de Wuppertal: a
aspirina, Engels e o Hans Donner. Se o braço nacional da enciclopédia precisa
de 31 linhas para descrever o cenário, a Wikipedia de língua inglesa revela-se
bem mais prolixa: 49 linhas e 34 colunáveis. Ambos os endereços jogam luz sobre
o Schwebebahn, o monotrilho (ou monorail) que há 110 anos transporta os
habitantes, os visitantes e, eventualmente, um elefante pela cidade de
Wuppertal. Tente o site oficial da municipalidade: há um relato insólito que
narra a curta viagem de Tuffi, garota-propaganda do circo Althoff, no trem
suspenso. Pouco após ser colocada em um dos vagões, a filhote de elefante
saltou para a liberdade e para a fama mundial entre aqueles que se deparam com
Wuppertal em seus caminhos.
Ainda
que Wuppertal já ostente 9 McDonald’s, segui os conselhos do Lucas e reservei
um quarto em Colônia: a previsão era de trens, chuva e duas peças da
Tanztheater de Wuppertal, companhia de dança que durante quase 40 anos esteve
sob a direção de Pina Bausch e que justifica o itinerário que eu nunca pensara
em escolher para as minhas férias.
Tudo
começou bem antes, quando me sentei na poltrona 33, fila H, balcão nobre do
Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Era 7 de abril de 2011: as cortinas
abertas revelavam um rabo de baleia à direita do palco, o público tomava seus
assentos, eu enrolava e desenrolava meu ingresso nos dedos enquanto esperava os
primeiros movimentos de Ten Chi, peça
de 2004 fruto de uma residência da companhia no Japão. Até o final da
performance cerca de 3 horas teriam sido transcorridas; 8 pessoas teriam
aproveitado o intervalo para abandonar seus lugares na fila G à minha frente;
uma torrente de neve – ou flores de cerejeira – teria forrado de branco o palco
do Municipal, encobrindo bailarinos, vestidos e cabelos, estes adquirindo vida
própria e executando uma coreografia paralela àquela dos corpos em cena.
Saí
do Theatro num choro tão físico, de soluços e arquejos, segurando-me pelo
corrimão escada abaixo: Ten Chi
penetra os alicerces do corpo, alterando principalmente as capacidades
musculares e gástricas. Tivesse uma epígrafe, a do meu pranto seria aquela de
Barthes que diz que “a leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola”.
Esse
descontrole: uma invasão de afetos não catalogados; gatilho de lágrimas e de
uma paralisia momentânea; o choque de reconhecer no corpo alguma coisa tão
primária e ao mesmo tempo tão complicada de dimensionar; motor de ideias e de
gestos que substituem a fala quando você tenta, inutilmente, explicar para alguém
- braços e mãos que se dobram e se
projetam da direção do abdome para a frente, como se pudessem tirar do estômago
alguma tradução diante dessa dança. Esse descontrole: convém persegui-lo.
E
ele está ali, 3 de novembro de 2013, 10 euros de taxi da Hauptbahnhof até a
Opernhaus de Wuppertal, nos meus olhos que se inundam quando reconheço Lutz
Förster no foyer do teatro, na minha boca que não fecha ao olhar os pôsteres
espalhados pelas paredes, no meu riso que escapa quando vislumbro o tapete de
cravos cor de rosa que cobre o palco, nos primeiros acordes de uma versão da década de 1920 de The man I love com
aquele homem de terno sozinho no meio das flores fazendo sua linguagem de sinais, nos meus pés ritmados e o cantarolar baixinho das Pastorinhas que eu não esperava na trilha, na minha tentativa
frustrada de roubar um cravo pisoteado do cenário quando Nelken se encerra e as pessoas já deixam a plateia.
E também: 5 dias depois, 8 de novembro, no palco uma espécie de gramado vertical ou um pedaço de um penhasco – uma parede de superfície irregular coberta de folhagens e plantas -, do verde cai uma goteira ininterrupta, como se poucas horas antes tivesse chovido uma tempestade e nós víssemos, então, o depois: cheios de vontade de abrir a boca e beber da água que escorre, como fazíamos quando éramos crianças.
Uma
das bailarinas, usando camisola fina e branca, caminha em direção ao fundo da
cena. Agachada próxima ao penhasco, ela se banha com a ajuda de um balde e fica
ali numa calma inabalável, indiferente à entrada de uma música e de um
bailarino. Ele
veste calça e camisa social, entra correndo no palco e em algum ponto tenho a
impressão de que desliza seus pés descalços pelo chão até frear e iniciar uma
sequência de movimentos: o corpo todo participa e os braços constantemente se
voltam para os céus, assim como a cabeça, e tudo parece sair bem do meio do seu
tronco para as extremidades, como se lançasse raios de si mesmo ao redor. Ele
se reveza com outros bailarinos que se alternam nessa sequência de corrida,
deslize, freio: braços e cabeças para além (quando entrarem para os
agradecimentos vou perceber que eles são muito menores do que parecem) e há uma
urgência nessa escala – o palco não pode ficar sozinho, nós, sentados ali na
frente, não podemos e não queremos ficar sozinhos, e de repente os homens
entram e saem velozes, enchendo a cena em contraste com ela: lenta, brincando
com seus cabelos, roupa agarrada na pele.
Eles
dançam e dançam e dançam enquanto ela se encharca e nem percebo quando ou como
desaparece. Tudo isso acontece embalado por uma música que fala de Angola e que
cantarei ininterruptamente na minha cabeça nos dias seguintes, e tudo isso
perfura coisas em mim, órgãos em mim, e à saída do teatro meu guarda-chuva
esbarra no de Dominique Mercy e no trem para Colônia eu nunca mais quero
esquecer esses dias, nunca mais quero apaziguar esse corpo. Quero conservar esse
desejo, preservar vaga-lumes, saborear o meu devir-bailarino. Quero que esse
trajeto dure tanto.
::
Escreva
sobre suas vivências em Wuppertal, me aconselharam. Mas como dizer? Como contar
de elefantes que se aventuram por entre as janelas de um trem suspenso? E de
bailarinos que se lançam numa reinvenção de seus corpos e de si mesmos, e de
nós mesmos – um só existindo às custas do outro, todos bambos à procura de um
eixo quando os aplausos cessam? Como escrever sobre o que se passa nessa cidade
insólita que nem sequer existe?
No
prólogo de seu Movimento total, José
Gil traz uma fala de Merce Cunningham que é um alento às minhas perguntas e,
possivelmente, às inquietações de Tuffi*: “Perante o vazio, [o bailarino] está
só, de uma solidão que o arranca para fora de si. Está só e fora de si. O seu
gesto vai na direção dos outros corpos. Como dançar esse gesto? Como fazer?
‘Fazendo-o’, diz Cunningham.”
Agradecimento final em Nelken, Ein Stück von Pina Bausch - Wuppertal, 3 de novembro de 2013.
*
De acordo com o site oficial da cidade de Wuppertal, o salto de Tuffi lhe
rendeu um bumbum machucado.
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