Diante da confusão magistral da casa de
Trevor Thomas, as casas arrumadas em que quase todos vivemos parecem pobres e
sem vida da mesma forma que as narrativas chamadas de biografias empalidecem e
perdem a força diante da realidade desordenada que é uma vida. A casa de Thomas
também ocorre a minha imaginação como uma metáfora para o problema da
composição literária. A pessoa que se senta para escrever não se vê diante de
uma página em branco, mas de sua própria mente atulhada em excesso. O problema
é livrar-se da maior parte do que ela contém, encher imensos sacos plásticos de
lixo com a mistura confusa de coisas que lá se acumularam ao longo dos dias,
meses e anos de nossas vidas, coisas que fomos recolhendo através dos olhos,
dos ouvidos e do coração. A finalidade é abrir um espaço onde algumas ideias,
imagens e sensações possam ser arrumadas de tal forma que o leitor queira
passar algum tempo entre elas, em vez de fugir correndo como eu tive o impulso
de fugir da casa de Thomas. Mas esse trabalho de faxina (da narração), além de
árduo, é perigoso. Há o risco de jogar fora o que não se deve e conservar as
coisas erradas; há o risco de jogar fora coisas demais e ficar com a casa
excessivamente nua; e há o risco de jogar tudo fora. Depois que começamos a
jogar fora, pode ser difícil parar. Talvez seja melhor nem começar. Talvez seja
melhor aferrar-se a tudo, como Trevor Thomas, para não correr o risco de ficar
sem nada. O medo que senti na casa de Thomas é primo do medo sentido pelo
escritor que não consegue correr o risco de começar a escrever.
Janet Malcolm em A mulher calada. Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia (tradução: Sergio Flaksman)
De qualquer modo, aquele encontro, que
aconteceu realmente e que, portanto, foi verdadeiro, pode ser lido aqui
simplesmente como uma invenção, como algo falso, já que, em primeiro lugar,
naquele momento eu estava tão desorientado e preocupado que podia e ainda posso
desconfiar dos meus sentidos, que naquela época talvez interpretassem
erroneamente um fato verdadeiro, e, em segundo lugar, porque aquele encontro
com o jogador de futebol decrépito de um país que me parecia precocemente
envelhecido, e quase tudo o que aconteceu depois, o que vou contar aqui, foi
verdadeiro mas não necessariamente verossímil. Alguém disse uma vez que em
literatura o belo é verdadeiro, mas o verdadeiro em literatura é só o
verossímil, e entre o verossímil e o verdadeiro há uma distância enorme. Sem
falar do belo, que é algo de que nunca deveríamos falar: o belo deveria ser a
reserva natural da literatura, o lugar onde o belo florescesse sem que a mão da
literatura jamais o tocasse, e deveria servir de recreio e consolo aos escritores,
já que a literatura e o belo são coisas completamente diferentes ou talvez a
mesma coisa, como duas luvas para a mão direita. Só que você não pode calçar
uma luva para a mão direita na esquerda, há coisas que não encaixam uma na
outra. Eu tinha acabado de chegar à Argentina e, enquanto esperava o ônibus que
me levaria até a cidade onde meus pais moravam, a cerca de trezentos
quilômetros a noroeste de Buenos Aires, eu pensava que tinha vindo dos escuros
bosques alemães para os pampas argentinos para ver meu pai morrer, para me
despedir dele e prometer-lhe – embora eu não acreditasse nisso de jeito nenhum
– que nós dois teríamos outra oportunidade, em algum outro lugar, para que cada
um de nós descobrisse quem era o outro e, talvez, pela primeira vez desde que
ele havia se transformado em pai e eu em filho, por fim entenderíamos algo; mas
isso, mesmo que fosse verdadeiro, não parecia verossímil de jeito nenhum.
Patricio Pron, O espírito dos meus pais
continua a subir na chuva (tradução: Gustavo Pacheco)
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