sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Se ela soubesse

Sentada na mesa esperando o almoço sozinha, conversando com o garfo, mor-ren-do de saudades de um amigo que promete que vai te ligar, mor-ren-do mais ainda de vontade de perguntar pra ele se aquele outro afinal..., torcendo pra que ele responda que não, ou que sim, tanto faz, já passou, mas passou mesmo?, e cai a faca no chão fazendo um estardalhaço, não importa, o que importa mesmo é que tem menos de um mês de ballet e você se convence de que esqueceu a sapatilha em casa sem querer e por isso não pode ir à aula, como chove em janeiro, eu achava que era março, fevereiro chegando e a desculpa da sapatilha, qual vai ser a próxima?, todo mundo falando de carnaval, os blocos nas ruas e você comendo trufas na torre do Rio Sul, entendendo mais um pouco sobre cores que eu não sei o nome, um monte de pinturas que se parecem com você e nenhum tesão pra começar a ler Saramago, nenhum tesão, ponto., aquela cadeira antiga no brechó, o botão do vestido para pregar, a dedicatória nos livros e a foto na página vinte e sete, você posando de musa e ele sumindo no mundo, a única pessoa que poderia te resgatar, todo esse cuidado com a pele e todo mundo viajando e se amando e ele nunca atende o telefone quando você precisa de colo, a mala ainda no chão esperando para ser desfeita, a explicação que nunca vem, a dor de cabeça que nunca passa, ela fingindo que não liga, tentando ligar, tentando dormir, tentando culpá-lo ainda, os dois, os três, os sapatos enfileirados na varanda, o cão não gosta mais de subir na sua cama, aquele livro que ficou pela metade, um fim de semana do outro lado da ponte aérea, o tombo da outra, a risada da outra, a saudade que ela se deu conta que tinha, a felicidade de poder saciar, a tristeza de não poder conversar com o seu criador, se tivesse sido mais ousada como ele disse, se tivessem dado aquela festa, se aquele outro tivesse ficado, o perfume novo que ele não reconheceria, e como é que se consegue uma locadora de filmes decente?, todos os versos que um outro escreveu, a lente que no fim do dia resseca, o mesmo trajeto todas as manhãs, falta de apetite, mas tenho que comer, o casal da mesa ao lado conversando, ainda bem!, aquele filme no cinema Leblon e ele de sobretudo, o sapato machucando o joanete, outra desculpa, o telefone da outra escola de dança, uma certa misantropia blasé, tudo fachada, acabam acreditando, ele mesmo achava que eu era punk-metaleira, os sonhos dos dentes que se repetem, está na hora de voltar pra análise, você não pode passar a vida fugindo, e toda essa abstração, o barulho começa a fazer sentido de novo, os garçons, o suco de abacaxi que vai ficando concentrado no fundo do copo, um aceno, e aquele escritório gelado, todas as estampas penduradas e você tentando combinar azul com roxo, entre por essa porta agora e diga que me adora você tem meia hora, como rimam algumas coisas, como doem outras, o taxi de volta, caminho de sempre, aquela música deprimente no rádio, deixar de lado essas bobagens, os dias passaram, ele se mudou, guardar o recibo pra pedir reembolso, guardar sua cara pra sorrir de vez em quando, guardar um pouco de veneno pra te matar de vez, semana que vem, sem falta.

:: Ah, não existe coisa mais triste que ter paz
E se arrepender, e se conformar
E se proteger de um amor a mais
(...)
Ah, que não seja o meu
O mundo onde o amor morreu

Vinícius e Baden em Tempo de Amor

3 comentários:

Paula disse...

Adorei o texto! Parabéns.

Anônimo disse...

"o casal da mesa ao lado conversando, ainda bem!", também tenho aflição com casal que come e não conversa. Não precisa conversar o tempo todo, mas alguma coisa precisa ser dita, nem que seja mentira. E, tá difícil, né? Torço para que melhore.

Pedro disse...

Demais! Parabéns.
Pedro Schprejer