terça-feira, fevereiro 26, 2008

Xadrez

Eu tropeço, você me ampara. Eu agradeço enquanto me esforço em parecer normal e não deixar frestas mas é sempre tarde e antes de me dar conta já estou enredada nas suas gracinhas. Você me faz um elogio qualquer, eu rio sarcástica. Você se apressa em apontar minha ironia, eu acentuo cada detalhe dela. A mesa está montada. Você logo assume seu lugar de vítima e começa o discurso de coitadinho e, mais rápido que eu, não deixa tempo pra inverter. Em menos de minutos os papéis estão definidos, tabuleiro pronto. Você me alfineta e eu devolvo, você me irrita e eu caio. Eu sempre seu algoz que te destrata, você sempre meu menino ressentido e nessa ciranda de clichês vamos dançando sem dar trégua. Eu dou um passo pra fora e você, rude, me arrasta de volta e na segunda tentativa de fuga eu já me demoro de propósito só para atestar que você não se antecipa, calculando a próxima rodada. Eu me desfaço em carinhos para pôr fim ao jogo e você ri na sua poltrona com desdém. Eu te digo desaforos, você me grita, eu sempre insensível e repelente, você se vendendo de bonzinho e quando num deslize ou num cansaço a gente esquece a fala, à tona vem um diálogo de silêncios, o meu rosto que sempre vira, a sua mão que nunca alcança. Seguimos jogando por horas, alternando charme e acusações, envolvidos numa teia de performances e ensaios, de frases feitas e coisas tão antigas e a partida termina sempre sem cheque-mate, sempre sem desmentir a farsa.

Eu tropeço, e nunca sei se é você que põe o pé na minha frente ou se sou eu.

:: "Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este 'velho obscurantista', nos frêmitos roxos da tua carne, nessa tua obsessão pelo meu corpo, e, depois, nas prateleiras onde você arrumou com criterioso zelo todos os teus conceitos, encontre um lugar também para esta tua paixão, rejeitada na vida."
Raduan Nassar no conto "O Ventre Seco" in Menina a Caminho

3 comentários:

Anônimo disse...

Se sabes que o tropeço é certo, por que não segues por outro caminho?

Julieta disse...

e que graça teria?

Anônimo disse...

Estás certa. Poucas coisas superam a sensação do coração aos pulos e as pernas bambas, né?