quarta-feira, fevereiro 27, 2008

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Xadrez

Eu tropeço, você me ampara. Eu agradeço enquanto me esforço em parecer normal e não deixar frestas mas é sempre tarde e antes de me dar conta já estou enredada nas suas gracinhas. Você me faz um elogio qualquer, eu rio sarcástica. Você se apressa em apontar minha ironia, eu acentuo cada detalhe dela. A mesa está montada. Você logo assume seu lugar de vítima e começa o discurso de coitadinho e, mais rápido que eu, não deixa tempo pra inverter. Em menos de minutos os papéis estão definidos, tabuleiro pronto. Você me alfineta e eu devolvo, você me irrita e eu caio. Eu sempre seu algoz que te destrata, você sempre meu menino ressentido e nessa ciranda de clichês vamos dançando sem dar trégua. Eu dou um passo pra fora e você, rude, me arrasta de volta e na segunda tentativa de fuga eu já me demoro de propósito só para atestar que você não se antecipa, calculando a próxima rodada. Eu me desfaço em carinhos para pôr fim ao jogo e você ri na sua poltrona com desdém. Eu te digo desaforos, você me grita, eu sempre insensível e repelente, você se vendendo de bonzinho e quando num deslize ou num cansaço a gente esquece a fala, à tona vem um diálogo de silêncios, o meu rosto que sempre vira, a sua mão que nunca alcança. Seguimos jogando por horas, alternando charme e acusações, envolvidos numa teia de performances e ensaios, de frases feitas e coisas tão antigas e a partida termina sempre sem cheque-mate, sempre sem desmentir a farsa.

Eu tropeço, e nunca sei se é você que põe o pé na minha frente ou se sou eu.

:: "Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este 'velho obscurantista', nos frêmitos roxos da tua carne, nessa tua obsessão pelo meu corpo, e, depois, nas prateleiras onde você arrumou com criterioso zelo todos os teus conceitos, encontre um lugar também para esta tua paixão, rejeitada na vida."
Raduan Nassar no conto "O Ventre Seco" in Menina a Caminho

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Se ela soubesse

Sentada na mesa esperando o almoço sozinha, conversando com o garfo, mor-ren-do de saudades de um amigo que promete que vai te ligar, mor-ren-do mais ainda de vontade de perguntar pra ele se aquele outro afinal..., torcendo pra que ele responda que não, ou que sim, tanto faz, já passou, mas passou mesmo?, e cai a faca no chão fazendo um estardalhaço, não importa, o que importa mesmo é que tem menos de um mês de ballet e você se convence de que esqueceu a sapatilha em casa sem querer e por isso não pode ir à aula, como chove em janeiro, eu achava que era março, fevereiro chegando e a desculpa da sapatilha, qual vai ser a próxima?, todo mundo falando de carnaval, os blocos nas ruas e você comendo trufas na torre do Rio Sul, entendendo mais um pouco sobre cores que eu não sei o nome, um monte de pinturas que se parecem com você e nenhum tesão pra começar a ler Saramago, nenhum tesão, ponto., aquela cadeira antiga no brechó, o botão do vestido para pregar, a dedicatória nos livros e a foto na página vinte e sete, você posando de musa e ele sumindo no mundo, a única pessoa que poderia te resgatar, todo esse cuidado com a pele e todo mundo viajando e se amando e ele nunca atende o telefone quando você precisa de colo, a mala ainda no chão esperando para ser desfeita, a explicação que nunca vem, a dor de cabeça que nunca passa, ela fingindo que não liga, tentando ligar, tentando dormir, tentando culpá-lo ainda, os dois, os três, os sapatos enfileirados na varanda, o cão não gosta mais de subir na sua cama, aquele livro que ficou pela metade, um fim de semana do outro lado da ponte aérea, o tombo da outra, a risada da outra, a saudade que ela se deu conta que tinha, a felicidade de poder saciar, a tristeza de não poder conversar com o seu criador, se tivesse sido mais ousada como ele disse, se tivessem dado aquela festa, se aquele outro tivesse ficado, o perfume novo que ele não reconheceria, e como é que se consegue uma locadora de filmes decente?, todos os versos que um outro escreveu, a lente que no fim do dia resseca, o mesmo trajeto todas as manhãs, falta de apetite, mas tenho que comer, o casal da mesa ao lado conversando, ainda bem!, aquele filme no cinema Leblon e ele de sobretudo, o sapato machucando o joanete, outra desculpa, o telefone da outra escola de dança, uma certa misantropia blasé, tudo fachada, acabam acreditando, ele mesmo achava que eu era punk-metaleira, os sonhos dos dentes que se repetem, está na hora de voltar pra análise, você não pode passar a vida fugindo, e toda essa abstração, o barulho começa a fazer sentido de novo, os garçons, o suco de abacaxi que vai ficando concentrado no fundo do copo, um aceno, e aquele escritório gelado, todas as estampas penduradas e você tentando combinar azul com roxo, entre por essa porta agora e diga que me adora você tem meia hora, como rimam algumas coisas, como doem outras, o taxi de volta, caminho de sempre, aquela música deprimente no rádio, deixar de lado essas bobagens, os dias passaram, ele se mudou, guardar o recibo pra pedir reembolso, guardar sua cara pra sorrir de vez em quando, guardar um pouco de veneno pra te matar de vez, semana que vem, sem falta.

:: Ah, não existe coisa mais triste que ter paz
E se arrepender, e se conformar
E se proteger de um amor a mais
(...)
Ah, que não seja o meu
O mundo onde o amor morreu

Vinícius e Baden em Tempo de Amor

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Ladeira abaixo

Começar o Carnaval indo a bloco matutino em Santa Teresa é fazer a matemática inversa: você paga os pecados antes.

A escadaria é quase penitência, a fantasia não resiste à segunda ladeira e quando você finalmente consegue alcançar o bloco, está tão exausto que quer ir embora. Entre descer ladeiras e escadarias tudo de novo e seguir um pouco os foliões, a segunda alternativa vence, e embalado por marchinhas que você sequer distingue de tão morto, se embrenha em meio a pessoas muito, muito suadas. Mas se chegamos até aqui e é fevereiro, sigamos em frente.

Você escuta o seu amigo dizer que daria seu reino por uma água, que parece ser artigo de luxo, arriscam-se na cerveja, quente, e todo o resto é quente, sol a pino, homens sem
camisa, você tira a peruca e é pena que não pode tirar também os cabelos.

Em meio a tantas pessoas, não há pra onde fugir. Pierrots lambendo colombinas, confetes e purpurinas grudados, roupas idem, os dedos enrugados de suor, por que mesmo que a gente gosta disso?, grupos fantasiados que te dão esperança de que alguma coisa ainda pode ser engraçada, mas não tem jeito, o bloco se vai, você fica pra trás se revezando no banho de mangueira que um solidário e politicamente incorreto morador do bairro oferece à horda de foliões que parecem vindos de uma caravana do deserto. Alala-ô nunca fez tanto sentido e provavelmente foi escrita por alguém que teve a visão do futuro (ou do inferno?): bloco de rua em Santa Teresa às 10 da manhã de um sábado de fevereiro no Rio. Quem foi que nos sacaneou assim?


Lá pelas tantas, sentados no meio fio de uma ruazinha que parece ter aparecido para salva-los da morte por esmagamento, a mensagem de uma amiga que diz ter perdido-se do bloco. àquela altura, perdida também, eu não pretendia mais encontrá-lo...


Na volta, marchinhas na ponta da língua, mas não tem jeito: Aurora parece ser o grande hit de Momo. Na dúvida, ôô-ôô.

Almoço, banho e parte da dignidade está recuperada, mas ainda é cedo pra arriscar-se de novo, além do mais domingo às nove você precisa estar na Praça XV.

Amanhece chovendo, mas não há nada que impeça o Boitatá de sair, e sob a máxima do faça chuva ou faça sol, você entra no táxi e dá a ordem, se a canoa não virar eu chego lá. é um lugar onde chove torrencialmente, os amigos dos amigos vestidos de arca de Noé gritam “dilúvio!” , a venda de capas de chuva é maior que a de cerveja e você começa a rezar pra não ser acometido por leptospirose ou semelhantes. As pessoas brincando na praça alheias aos pingos que não dão trégua, e não há arlequim que me convença. Eu sou brasileira mas tenho um pezinho na Europa e desisto às vezes.

Meu carnaval encerrou-se prematuramente no domingo na sala quentinha com piano de uma amiga xará, me preparando para a dengue ou a pneumonia. Cervejas, prosecco, fotos dos amigos, conversas e um ipod cheio de Zero 7, Gotan Project e afins, nada que me lembrasse a horda de malucos atrás de máscaras pulando por aí em blocos, animados, felizes.

Dentro de um casaco de lã, meias e com xícara de chá em punho, a segunda de carnaval parecia pra mim a quarta-feira de cinzas, a chuva continuou caindo, seja o que deus quiser. Ano que vem tem mais e sempre bate uma loucura qualquer nessa época.

Porque só mesmo um pouco insano pra gostar dessa coisa não-higiênica que é o Carnaval.




:: ouvindo The Rolling Stones da casa do vizinho, sentindo saudades das pessoas do Carnaval de 2006!