O dia em que a Pina Bausch morreu foi o mesmo em que eu entendi que não poderia confiar jamais outra vez em oftalmologistas, especialmente os que dizem que no meio da cirurgia de miopia a pessoa sente um cheiro de queimado e que é normal. Normal, na minha concepção, é sentir cheiro de xampu no cabelo, de bueiros no Leblon ou de bifes na cozinha. Ou acordar e não enxergar as horas no despertador na mesinha, ou tomar banho de óculos, ou tira-los da cara e fazer uma seqüência de rolamentos míopes na aula de dança e terminar desnorteada.
O dia anterior ao da morte da Pina Bausch foi quando eu resolvi de fato que eu não faria a operação de miopia, mesmo se o especialista em retina dissesse que as degenerações do olho esquerdo não eram nada, o que de fato ele disse.
Nos minutos anteriores ao oftalmologista afirmar que minas retinas estavam aptas à cirurgia eu vislumbrei toda a cena que fatalmente aconteceria se eu adentrasse a sala de procedimentos com aquela touca protetora comprimindo os cabelos. Eu me agarraria na minha mãe, no meu pai e em quem mais estivesse pela frente gritando e chorando e tapando meus olhos com as mãos, como fez a garota loirinha de seis anos que estava na sala de espera comigo, e que não deixava pingarem nela o colírio dilatador de pupilas nem por um decreto.
Eu quis dizer a ela que o olho dela ia arder só um pouco, pior era o meu que exalaria cheiros de queimado. Eu quis dizer a ela que era melhor dilatar logo as pupilas, que pelo menos ela tinha pai e mãe para a levarem para a casa sã e salva num carro onde não precisaria se arriscar a dirigir após a consulta. Eu quis dizer a ela que pelo menos ela não tinha idéia de quem era Michael Jackson, muito menos Pina Bausch.
No dia em que a Pina Bausch morreu eu poderia ter feito uma boa ação para aquela criança, que provavelmente ficou traumatizada com a ida ao oftalmologista e que, assim como eu, provavelmente, nunca mais colocará os pés naquela clínica. Em vez disso eu entrei no carro e vim dirigindo pra casa com os olhos dilatados encolhidos com o excesso de claridade, quase me acidentando de cegueira, vertendo lágrimas dentro de um carro sem trilha sonora, pensando que talvez o meu pai tenha razão quando diz que não precisamos superar todos os nossos medos nessa vida. No dia em que a Pina Bausch morreu eu cheguei em casa viva e sem enxergar de perto, de longe ou de médio. Me tranquei sob as cobertas e dormi dez horas.
O dia em que a Pina Bausch morreu foi o mesmo em que uma aluna nova chegou à minha turma de dança, e após 40 minutos ela perguntou se eu conseguia fazer a aula toda de óculos sem problemas. Sim, eu respondi. Sem qualquer problema.
terça-feira, junho 30, 2009
quarta-feira, junho 24, 2009
Tomar o mundo feito coca-cola
"Só falta te querer
Te ganhar e te perder
Falta eu acordar
Ser gente grande pra poder chorar"
Lulu Santos in O Último Romântico
É que às vezes acontece isso de chorar com uma mesa entre nós, de ficar sombria e engasgada e encrencada numa linha curva de pensamentos tortos, acontece às vezes de enxugar os olhos com guardanapo timbrado, de inundar hastes de óculos gastos e marrons, de esfregar os olhos e ter soluços pequeninos e contritos que tentam cessar essa torrente que se põe a desfiar histórias e lembranças tão de trás, tão de longe.
É difícil dizer se um abraço teria sido consolo, ou se mousse de chocolate, ou se meia, ou se noites clandestinas que viravam refúgios com espelhos nos tetos, tudo isso pra deixar pra lá esses redemoinhos de coisas e perguntas, pra deixar pra trás melancolias cheias de dúvidas que não terminaram e que então desse lado da mesa vêm à tona tão naturalmente como espirros em dias úmidos.
É que quando fica inverno essas coisas jorram: esses humores quase sempre tão disfarçáveis, esses prantos que geralmente sabem que o melhor horário é no meio de uma madrugada sozinha, essa carência de pele e do outro que normalmente se conforma com os suspiros de uma saudade que nunca vira nós dois, essa insegurança que habitualmente se esconde entre piadas e um jeito de ir vencendo os dias graças a risos que não têm por que.
E tosse. E essa letargia, esse estado hipocondríaco que vem com travesseiro, falta de convites para comer fondue e pancadas de chuva à tarde.
É que às vezes acontece isso quando fica inverno: esse frio, esse pulmão congestionado, lenços de papel que vão secando uma porção de lágrimas desordenadas, um medo que só mesmo roupa de flanela, "me dá um beijo então / aperta a minha mão". É que às vezes, com sorte, passa um filme de infância na "Sessão da Tarde".
Te ganhar e te perder
Falta eu acordar
Ser gente grande pra poder chorar"
Lulu Santos in O Último Romântico
É que às vezes acontece isso de chorar com uma mesa entre nós, de ficar sombria e engasgada e encrencada numa linha curva de pensamentos tortos, acontece às vezes de enxugar os olhos com guardanapo timbrado, de inundar hastes de óculos gastos e marrons, de esfregar os olhos e ter soluços pequeninos e contritos que tentam cessar essa torrente que se põe a desfiar histórias e lembranças tão de trás, tão de longe.
É difícil dizer se um abraço teria sido consolo, ou se mousse de chocolate, ou se meia, ou se noites clandestinas que viravam refúgios com espelhos nos tetos, tudo isso pra deixar pra lá esses redemoinhos de coisas e perguntas, pra deixar pra trás melancolias cheias de dúvidas que não terminaram e que então desse lado da mesa vêm à tona tão naturalmente como espirros em dias úmidos.
É que quando fica inverno essas coisas jorram: esses humores quase sempre tão disfarçáveis, esses prantos que geralmente sabem que o melhor horário é no meio de uma madrugada sozinha, essa carência de pele e do outro que normalmente se conforma com os suspiros de uma saudade que nunca vira nós dois, essa insegurança que habitualmente se esconde entre piadas e um jeito de ir vencendo os dias graças a risos que não têm por que.
E tosse. E essa letargia, esse estado hipocondríaco que vem com travesseiro, falta de convites para comer fondue e pancadas de chuva à tarde.
É que às vezes acontece isso quando fica inverno: esse frio, esse pulmão congestionado, lenços de papel que vão secando uma porção de lágrimas desordenadas, um medo que só mesmo roupa de flanela, "me dá um beijo então / aperta a minha mão". É que às vezes, com sorte, passa um filme de infância na "Sessão da Tarde".
quarta-feira, junho 03, 2009
Cravo bem temperado
Assim como as mães e os homens, todas as avós devem ser iguais, mas certamente nenhuma se compara com a minha. A minha avó tem um cabelo branquinho mais comestível que algodão-doce e sempre aquela voz de conforto que só as avós sabem ter. A minha avó arregala os olhos quando fica embatucada, porque ela sim sabe bem o que é ficar embatucada. Ela fica intisicada também, e só ela sabe quando alguém fica uma ou outra coisa. Quando eu penso que ela vai dizer que fulano estava embatucado ela diz intisicado e vice-versa. Só a minha avó tem sabedoria e vivência suficientes pra distinguir estados de espírito tão semelhantes.
A minha avó faz doces politicamente incorretos que arrepiariam os cabelos de qualquer americano babaca se entendesse que eles vêm embrulhadinhos um a um e se chamam preto-de-alma-branca. A minha avó certamente iria para a corte. Muito embatucada.
Foi a minha avó que disse que eu deveria passar leite de mamão verde nas perebas da sola do pé. A minha avó é assim: ela tem netas que às vezes pisam onde não deveriam. Então, por causa de minha avó, aqui em casa de manhã todo dia tem gritaria quando o leite de mamão verde encosta na primeira ferida. Eu não fico embatucada nem intisicada porque com a dor que dá só tem um sentimento possível de se sentir: solidão. Eu dou pulinhos até o quarto, coloco o pé pra cima e faço origamis.
Verdade seja dita: eu tento fazer origamis. Origamis combinam muito bem com esse sentimento de solidão profunda que a dor te traz: ninguém, ninguém mesmo, nem sua avó nem sua mãe nem sua irmã podem te ajudar.
Avós podem fazer quantos doces indecorosos forem possíveis, que não vai melhorar a dor. Mães podem dizer quantas vezes forem necessárias pra filhas olharem por onde andam que eventualmente elas vão enfiar o pé na jaca. Irmãs podem dividir o sofá todas as noites para verem juntas a novela que não tem jeito, o pé vai continuar queimando. E nem mesmo as três juntas seriam capazes de decifrar os confusos desenhos do livro de origamis, o que me leva à conclusão de que todos os japoneses devem ser também iguais: não-embatucados, não-intisicados, felizes, tranqüilos e zens com acupuntura, yoga, medicina oriental e avós que lhes ensinam desde cedo a fazer dobraduras, porque só assim mesmo pra conseguir fazer girafas e sapinhos saltitantes.
Quando o embatucamento começa a dar lugar à solidão é que o pé já parou de doer e eu já gastei uns cinco papéis especiais e não consegui fazer um cisne. A minha avó diz ‘não se preocupa, na maciota você consegue’. Então a minha avó faz mais uma demonstração de sua experiência e me aconselha a montar meus origamis com o bisneto dela, um rapazinho de três anos, engraçado e serelepe também conhecido como meu primo. Só que meu primo, eu juro, está mais interessado em escutar óperas. Me dou por vencida: no fim de semana faço uma visita de taxi, caminho manca até o quartinho dele e resignada pergunto: quer ouvir um pouco de Bach?
A minha avó faz doces politicamente incorretos que arrepiariam os cabelos de qualquer americano babaca se entendesse que eles vêm embrulhadinhos um a um e se chamam preto-de-alma-branca. A minha avó certamente iria para a corte. Muito embatucada.
Foi a minha avó que disse que eu deveria passar leite de mamão verde nas perebas da sola do pé. A minha avó é assim: ela tem netas que às vezes pisam onde não deveriam. Então, por causa de minha avó, aqui em casa de manhã todo dia tem gritaria quando o leite de mamão verde encosta na primeira ferida. Eu não fico embatucada nem intisicada porque com a dor que dá só tem um sentimento possível de se sentir: solidão. Eu dou pulinhos até o quarto, coloco o pé pra cima e faço origamis.
Verdade seja dita: eu tento fazer origamis. Origamis combinam muito bem com esse sentimento de solidão profunda que a dor te traz: ninguém, ninguém mesmo, nem sua avó nem sua mãe nem sua irmã podem te ajudar.
Avós podem fazer quantos doces indecorosos forem possíveis, que não vai melhorar a dor. Mães podem dizer quantas vezes forem necessárias pra filhas olharem por onde andam que eventualmente elas vão enfiar o pé na jaca. Irmãs podem dividir o sofá todas as noites para verem juntas a novela que não tem jeito, o pé vai continuar queimando. E nem mesmo as três juntas seriam capazes de decifrar os confusos desenhos do livro de origamis, o que me leva à conclusão de que todos os japoneses devem ser também iguais: não-embatucados, não-intisicados, felizes, tranqüilos e zens com acupuntura, yoga, medicina oriental e avós que lhes ensinam desde cedo a fazer dobraduras, porque só assim mesmo pra conseguir fazer girafas e sapinhos saltitantes.
Quando o embatucamento começa a dar lugar à solidão é que o pé já parou de doer e eu já gastei uns cinco papéis especiais e não consegui fazer um cisne. A minha avó diz ‘não se preocupa, na maciota você consegue’. Então a minha avó faz mais uma demonstração de sua experiência e me aconselha a montar meus origamis com o bisneto dela, um rapazinho de três anos, engraçado e serelepe também conhecido como meu primo. Só que meu primo, eu juro, está mais interessado em escutar óperas. Me dou por vencida: no fim de semana faço uma visita de taxi, caminho manca até o quartinho dele e resignada pergunto: quer ouvir um pouco de Bach?
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