quarta-feira, junho 03, 2009

Cravo bem temperado

Assim como as mães e os homens, todas as avós devem ser iguais, mas certamente nenhuma se compara com a minha. A minha avó tem um cabelo branquinho mais comestível que algodão-doce e sempre aquela voz de conforto que só as avós sabem ter. A minha avó arregala os olhos quando fica embatucada, porque ela sim sabe bem o que é ficar embatucada. Ela fica intisicada também, e só ela sabe quando alguém fica uma ou outra coisa. Quando eu penso que ela vai dizer que fulano estava embatucado ela diz intisicado e vice-versa. Só a minha avó tem sabedoria e vivência suficientes pra distinguir estados de espírito tão semelhantes.

A minha avó faz doces politicamente incorretos que arrepiariam os cabelos de qualquer americano babaca se entendesse que eles vêm embrulhadinhos um a um e se chamam preto-de-alma-branca. A minha avó certamente iria para a corte. Muito embatucada.

Foi a minha avó que disse que eu deveria passar leite de mamão verde nas perebas da sola do pé. A minha avó é assim: ela tem netas que às vezes pisam onde não deveriam. Então, por causa de minha avó, aqui em casa de manhã todo dia tem gritaria quando o leite de mamão verde encosta na primeira ferida. Eu não fico embatucada nem intisicada porque com a dor que dá só tem um sentimento possível de se sentir: solidão. Eu dou pulinhos até o quarto, coloco o pé pra cima e faço origamis.

Verdade seja dita: eu tento fazer origamis. Origamis combinam muito bem com esse sentimento de solidão profunda que a dor te traz: ninguém, ninguém mesmo, nem sua avó nem sua mãe nem sua irmã podem te ajudar.

Avós podem fazer quantos doces indecorosos forem possíveis, que não vai melhorar a dor. Mães podem dizer quantas vezes forem necessárias pra filhas olharem por onde andam que eventualmente elas vão enfiar o pé na jaca. Irmãs podem dividir o sofá todas as noites para verem juntas a novela que não tem jeito, o pé vai continuar queimando. E nem mesmo as três juntas seriam capazes de decifrar os confusos desenhos do livro de origamis, o que me leva à conclusão de que todos os japoneses devem ser também iguais: não-embatucados, não-intisicados, felizes, tranqüilos e zens com acupuntura, yoga, medicina oriental e avós que lhes ensinam desde cedo a fazer dobraduras, porque só assim mesmo pra conseguir fazer girafas e sapinhos saltitantes.

Quando o embatucamento começa a dar lugar à solidão é que o pé já parou de doer e eu já gastei uns cinco papéis especiais e não consegui fazer um cisne. A minha avó diz ‘não se preocupa, na maciota você consegue’. Então a minha avó faz mais uma demonstração de sua experiência e me aconselha a montar meus origamis com o bisneto dela, um rapazinho de três anos, engraçado e serelepe também conhecido como meu primo. Só que meu primo, eu juro, está mais interessado em escutar óperas. Me dou por vencida: no fim de semana faço uma visita de taxi, caminho manca até o quartinho dele e resignada pergunto: quer ouvir um pouco de Bach?

8 comentários:

bruna disse...

Deu saudades da minha avó;-)

FULANAS MULTIMARCAS disse...

É, as crianças andam engraçadas, ouvindo ópera, querendo matar pessoas......

bebel disse...

amey!!!!

Beta disse...

Adorei!!! rs
Sua vó é uma fofa mesmo!
bjs

Rodrigo Gameiro disse...

que coisa mais aconchegante este texto. Mesmo com esta história de solidão.

luzia disse...

que coisa mais fofa!!!
fiquei saudosista, agora!!!

Inês disse...

adorei!!

L.C disse...

oie vc tava no fashion rio ontem?? fiquei na dúvida se era vc..
beijos