quarta-feira, setembro 02, 2009

Carta a C.

Caríssimo,

Chegou-me seu email no meio de uma terça-feira em que rasguei mais de 3 páginas do caderno. A segunda trouxe tanto enfado e andança que nada (e nada mesmo: nem feijão, nem vestido ou poema) funcionou. Ainda não funciona: até aqui matei todas as aulas que podia e concluí que essa dor que voltou às costas só pode ser porque amei demais, e isso é o máximo de beleza que eu enxergaria em algum lugar, não fosse tão patético. Tenho visto pouca coisa que me deixa assim: mexida e desfigurada, tão diferente que envolve um reprocessamento anatômico.

Tem sido uma questão, essa (ou esta?). Me veio ao final daquele ballet. Será que aos poucos a gente vai perdendo essa pré-disposição aos deslumbramentos? Ou será que a gente anda correndo tanto e lendo tanto e sabendo tanto que fica mesmo sem saber parar e gostar dessas coisas? Ou será que é porque isso que sempre foi tão bom só pode ser tão bom e quando não é frustra? Ou será que essas coisas estão de fato repetitivas? Ou será que sou eu? E se for? E se eu te contar que outro dia quase não agüentei comer aquele prato todo de bolinhas-de-queijo? E se eu te contar que comi, porque deixar pela metade seria tão assustador pra mim quanto pros que estavam na mesa? Parece pequeno, eu sei. Mas assim percebo como é doído deixar essas partes que não sou mais pra trás. É doído porque não sei o que virá depois e ao mesmo tempo não sei como lidar com essas coisas que já foram minhas e que não são mais. Você sente isso às vezes? Você acha que é muito exagero pensar nisso tudo só porque não ando gostando de ballets?

Talvez seja. Essas conversas ficam melhores quando tem Carol do outro lado. Nós fazemos isso: destrinchamos essas miudezas e elas viram um monte de perguntas. Raramente sei responde-las. Carol diz que também não. Essa semana ela me perguntou o que me motiva e eu não conseguia saber nem por um decreto. Eu sei essas motivações abstratas e que ficam tão bem em blogs e textos que se pretendem bacanas: pé de jabuticaba, Clarice Lispector, vidro do carro abaixado, filme novo pra ver.

Estou com essa mania de enumerar coisas sem pé nem cabeça.

Estou com essa mania também de ficar querendo e tentando sonhar com ele. Mas não funciona, e nunca sei se é porque é quarta-feira ou se é porque é precaução.

E se a gente começa a assumir pra todo mundo essas mudanças? E se a gente começa a falar mesmo tudo o que quer, e se a gente começa a abraçar de verdade as pessoas, e se a gente pede um tempo pra uns? E se ninguém entender, será que dura muito essa solidão? E se a gente já estiver mesmo sozinho?

Eu te escreveria mais, não fosse essa escuridão pela janela. Está certo, eu te escreveria mais, porém não quero. Não quero e não é de birra e nem pra te convencer de que não tenho mais frases. Não quero porque as coisas que eu tenho pra contar ainda não aconteceram. E se virarem de verdade, te conto logo e sem fôlego, e fico feliz porque serão boas, minhas e novas. Fico feliz porque sim.

A previsão pro feriado é de chuva. Será que vai ter mesa no Jobi?

Um beijo,

11 comentários:

FULANAS MULTIMARCAS disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
FULANAS MULTIMARCAS disse...

Se te consola, depois de ler esse texto eu também fiquei pensando no que me motiva.....e não sei se realmente acreditei nas minhas respostas...

Carlos Andreazza disse...

Querida Julia,

Uma inegável qualidade desses períodos nebulosos é que deles de repente emergem textos como este seu. O que dizer? Uma beleza...

Acho, sim, que a gente vai perdendo aos poucos a capacidade de deslumbramento. E não acho ruim. Eu hoje me emociono raramente - e, no entanto, chega a ser constrangedor o meu momento de comoção. Uns dirão que é o triunfo da qualidade; não sei. Fato é que não podemos maldizer o conhecimento, sob o risco de incorrermos num lulismo tolo...

O que quero dizer? É bem simples - e tem mais a ver com a experiência que com a fantasia: que as bolinhas talvez não estivessem tão boas naquele dia; e que isto bastará para que nem mesmo a mais mítica das mesas resista ao paladar pior que o habitual... O que te proponho é uma leitura mais prática do ballet; porque já vi o mais lindo samba do Império Serrano ser cantado, na quadra do Império Serrano, da maneira mais terrível possível... E sabe o que me incomodou? Constatar que era capaz daquela formulação crítica, que outrora me seria heresia poderosa. Como aquele samba, naquele lugar, poderia me soar tão feio!? Ora, Julia, havia um cantor ali - um medíocre, e pronto. Isso não é pequeno, nem parece. É grande! Tudo continua seu, talvez mais que nunca.

Considero valor supremo um bocado mais de exigência. Em suma: se é nosso e tão nosso, que nos seja apresentado sempre perfeitamente, para que possamos, mais que simplesmente nos reconhecermos, nos reconhecermos em plena forma - e avante!

Estou numa fase boa, que resumo assim: que se danem os outros, se a opinião que esperam de mim não é mais - talvez nunca tenha sido! - a minha. É a liberdade... Uma banana para o gesso que nos querem impor; e quando a solidão apertar, escolhe o teu uísque, o teu charuto, o teu Esch, e vai reunir as tuas coisas num canto só teu, que é tiro e queda.

Aguardo os acontecimentos - bons e felizes - que virão. Mas o presente - numa mesa de amigos no Jobi - não há de estar ruim.

Beijo,

C.

Leticia W disse...

Carlos, saudade de vc !!!!
Esse post merece uma mesa do Jobi urgente !

Carlos Andreazza disse...

Urgente, Leticia, urgente!

(E posso jurar que a vi passar ontem defronte ao Esch)...

FULANAS MULTIMARCAS disse...

Era eu mesma, estava jantando com meu pai por ali !! Porque não me chamou ?

Julieta disse...

Carlos,

É a primeira vez que me respondem a uma carta por aqui. Leio e releio e só posso acrescentar uma coisa: ela deveria ser publicada na Coluna da Direita.

Sem mais delongas, as considerações e observações serão feitas acompanhadas de chope, com Oswaldo Montenegro desfilando pelo Leblon!

beijo,
J.

Carlos Andreazza disse...

Julia e Leticia, acho que já reciclei a minha imagem e posso voltar - renovado - ao Jobi, não?

Bruno Quintella disse...

Também não sei mais o que me motiva. Nem soube.

Talvez por isso cultivo em mim um sentimento sem nome, mas que por ser novo não chega a me motivar, mas é um bom motivo para reviravoltas. E por isso, decidi seguir meus instintos e brincar de cabra-cega com a vida.

te amo, minha querida amiga!

bruna disse...

A vantagem de brincar de cabra-cega com a vida é que podemos passar a mão na bunda dela se a espertinha virar de costas.

Beta Germano disse...

tb não me emociono mais com ballets, nem com desfiles, nem o bolinho de aipim do informal...tb não sei o motivo, só sei que é necessário buscar coisas novas para se emocionar...o que não significa que seja fácil.

vem logo!

bjs