domingo, julho 31, 2011

Corrosão


(um post com 2 epígrafes)

Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.

Paulo Henriques Britto in Trovar Claro.

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porque eu não sei o que é uma nêspera
ou como as coisas são sem mim. 

Marcello Sorrentino in Um pequeno sistema de incerteza.

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Quanto mais você não está aqui mais eu te invento neste lugar onde eu nunca estou: uma casa que não conheço, escadas que não sei onde vão dar, discursos que jamais saberei decifrar, músicas que ficarão quietas, coreografias que não vou saber dançar.

Quanto mais eu não consigo chegar até você, mais caminho se abre à frente, mais buracos pelo asfalto, sinais sempre fechados, ausência lancinante em cada esquina em que não estaciono pra te abrir a porta, te ver entrar.

Quanto mais você não volta, mais vai embora. Quanto mais teu CEP desconhecido, tuas mãos organizando estantes e coleções de discos que não compartilharemos. Quanto mais correspondência devolvida, mais cortinas nas tuas salas, e mais poesia nos meus braços.

Quanto mais não ver tua cara, mais desbotam as fotos, e invento outras imagens, quase todas desfocadas pra poder te desenhar no meio. Quanto mais a vida sem você, mais eu sozinha.

domingo, julho 17, 2011

O silêncio das línguas cansadas

Pedro Lago me propôs um desafio e eu topei: contar uma história que tratasse do encontro de um jovem leitor de Dostoiévsky com uma mulher mais velha no Jardim Botânico. Substituí o russo por um português e aí está o resultado.

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Sabe-se pouco a respeito dos encontros, mas que se davam toda terça-feira no banco de madeira perto do orquidário. Foi ali onde ela teve a ideia de enterrar os livros.

Antes que os primeiros quadrados de porcelana brotassem, porém, passaram-se meses em que ela era vista ali sozinha, a olhar fixamente praquele pedaço de chão onde seus sapatos ortopédicos tantas vezes se alongaram ao lado das sandálias de couro dele. Dizem que tinha um ar ao mesmo tempo desolado e econômico: eram escassos os suspiros, os movimentos e mesmo a contemplação foi substituída por uma espécie de nuvem que lhe encobria a visão. A qualquer momento tinha-se a impressão de que poderia chover perto dela. Parecia castigada por uma dor que ninguém adivinhava.

Quando as quinas dos quadrados começaram a perfurar o chão, o rebuliço foi geral. Achava-se que a obra do orquidário poderia ter soterrado antigas fundições. Ou que tesouros da família Imperial tinham sido esquecidos sob o solo, e agora subiam à superfície. Até que nem tanto esotérico assim. Técnicos, autoridades e entidades políticas e espirituais concordaram, unânimes no decreto: aquilo era obra de portugueses. Diante do espanto, decidiram arranca-los pelas raízes e conter, assim, os escândalos e curiosos que se amontoavam para ver os azulejos que floresciam no Jardim Botânico. Um plano de ação foi arquitetado para que se desfizesse tal absurdo, e os jardineiros mais experientes do parque foram requisitados para dar fim ao canteiro. A surpresa maior, porém, ainda estava por vir.

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Conta-se que ela era já uma senhora e que frequentava o local desde o ano anterior. Era discreta em vestes, gestos e palavras, mas emanava alegria. Não uma de carnaval, mas aquela alegria que se evidencia pelas mãos, sempre gentis aos toques, e pelos olhos, ainda ávidos pelos dias, especialmente pelas cores das orquídeas. Seu passeio era religioso. Contornava o roseiral, ia dar no lago de vitórias-régias e aspirava o ar com entusiasmo quando dava o primeiro passo pra dentro do orquidário. Seu prêmio: teria enfrentado tempestades marítimas, teria afundado naus inimigas, teria singrado oceanos povoados das mais monstruosas criaturas para chegar até ali. Morava do outro lado da rua, porém. Sua aposentadoria fora planejada para nutrir o grande amor que tinha por aquelas plantas, e depois de uma existência pontuada por perdas que a esquartejavam por dentro, fez daquele pedaço do Jardim Botânico o seu recanto. Esquecia-se de tudo em companhia das orquídeas.

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Um dia ela entrou no parque carregando uma pá, uma sacola que parecia pesada e óculos escuros que escondiam parte do rosto. Poucas pessoas viram quando ela abriu um buraco no chão. As poucas pessoas que viram quando ela abriu um buraco no chão estranharam, mas nenhuma delas se deu conta de que o canteiro de azulejos que brotava era justamente a pequena cova que aquela senhora havia aberto meses antes.

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Meses antes ela plantou os livros dele, e contou num bilhete a história que é a que se conta até hoje: ela Amália, nome de fado. Ele Gaspar, como um nobre navegante. As orquídeas, bengalas que a mantinham de pé. Os livros de Fernando Pessoa, alicerces dele. Numa terça-feira Amália não foi ver o roseiral, tampouco contornou o lago. Foi direto ao orquidário, e viu aquele sujeito ali, quase inexistente, pela primeira vez. Tão magro e tímido, calçava sandálias de couro, tinha a boca semiaberta e ondas nos olhos. Era jovem, alto, tinha uma ameaça de curva nas costas e parecia ter também todos os sonhos do mundo. Usava um bigode ultrapassado, além de óculos de leitura de molduras levíssimas. E carregava livros.

Sentaram-se no mesmo banco de madeira, ela para descansar, ele para ler. Quando percebeu a curiosidade que se esticava em sua direção, pigarreou, ficou rubro. E leu uma estrofe. Aflito, gaguejou. Ela riu, ele também. E tudo o que se desenrolou após esse primeiro encontro pareceu seguir essa lógica do também. Ela ficou mais feliz, ele também. Ela passou a falar mais, ele também. Ela ria, ele também. Ela qualquer coisa e ele também. Em pouco tempo ele tinha declamado boa parte da obra de Fernando Pessoa. Ao final de cada volume, ele a presenteava com o livro: orelhas, dobras, dedos, todas as marcas daquelas tardes, até mesmo folhas caídas de orquídeas que recolhiam juntos e que manchavam palavras.

Ela montou uma pequena biblioteca na sala de casa, e além das orquídeas, passou a fixar-se também nas lombadas e nas páginas do poeta português.

Um dia, porém, ele não apareceu na hora certa. Noutro dia, porém, ele não apareceu. Ela voltou a ser vista ali, sozinha, olhos fixos na terra do chão, agora sem as marcas dos pés longos e finos dele. Desabituara-se da solidão, e foi ganhando ares tristes, dizem, até, que parecia diminuir de tamanho. Decidiu, então, plantar os livros.

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Foi um cair de queixo atrás do outro. Ao lançarem as armas que revelaram o que havia sob os azulejos, a estupefação foi ainda maior. Antologias, coletâneas, sonetos, odes, rimas formavam um verdadeiro cemitério de livros, e deles brotavam azulejos. Quadrados brancos que iam furando a terra. Bocas se alargavam até quase esgarçarem os rostos incrédulos. Nenhum dos jornalistas e fotógrafos presentes ousou disparar um flash. A gente aparvalhada que estava ali, aos poucos, deu as costas ao canteiro e saiu andando, muda, aos tropeços. Aturdidos, os jardineiros aguardavam as ordens dos superiores. Incapazes de dar voz aos pensamentos, os superiores enxugaram das testas o suor, deram as costas e saíram escoltados pela polícia.

No dia seguinte não se falou mais no assunto. Não se escreveu uma linha nos jornais sobre os azulejos. Não se escutaram sussurros nem cochichos a respeito de tal episódio. Não se buscou explicação, não se consultaram os astros, não se encomendaram estudos. Quando descobriram o bilhete de Amália preso a um vaso dentro do orquidário, acrescentaram nas placas e nos mapas da instituição os caminhos e setas que levavam ao tal canteiro.

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A placa que contava a história da amizade entre Gaspar e Amália foi instalada numa manhã radiante. Fazia muito que Amália não era vista por ali, de fato, desde o dia em que ela chegou carregada com os livros e a pá ela não tinha mais voltado.

Naquele dia, conta-se, surgiram sobre os quadrados de porcelana os primeiros traços de tinta azul. Era primavera, a estação das flores.


quarta-feira, julho 13, 2011

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“Sempre gostei de ter medo”, disse valter hugo mãe bem no começo de uma noite que todo mundo merecia ter de vez em quando.

Há anos tenho uma queda literária por tudo o que vem de Portugal, e a paixão se estende a Angola e Moçambique. Gosto de tudo dessa língua parecida com a nossa, mas tão diferente no trato. Gosto, sobretudo, do uso do imperfeito. Gostava falar como eles, ter a mesma cadência e a nítida impressão de que prosa e poesia podem se confundir.

Gostava também que todo mundo tivesse, de vez em quando, uma noite tão gentil como a que acabei de ter, e que ainda vou saborear. Meus melhores momentos de valter hugo mãe são os que seguem.

Ele contava como foi quando o filho de Clarice Lispector lhe pediu que autografasse um livro: “Alguém nascer de Clarice Lispector é quase um desrespeito à raça humana que não pode nascer de Clarice. Ia ser maravilhoso se pudéssemos ter várias mães.”

Sobre livros e o fazer artístico, ele aponta a insatisfação como força motriz e norte, e sem ela um escritor deixa de escrever, um pintor deixa de pintar: “Nenhum livro até agora foi capaz de me calar. Nenhum livro foi suficiente.”

“Maridos há poucos, mulheres há muitas.”

Sobre personagens, gosta de livros sobre “pessoas que efetivamente poderiam ser encontradas.” Diz também que ao escrever momentos decisivos ou de grande impacto sobre o personagem, se vê compelido a telefonar para amigos para dizer o quanto os ama, e que chega a sentir inveja dos personagens.

“Nós adultos temos todas as idades dentro de nós.”

Defende a ideia de que deveríamos lidar apenas com pessoas agradáveis, e que deveria haver um esquema de substituição dos que não nos satisfazem.

“Achava os prosadores seres cheios de demasia”, enquanto que a poesia sempre lhe pareceu essencial. Falando sobre sua pontuação e sobre a escolha de escrever somente com letras minúsculas, destacou a vontade de dar velocidade ao livro. “A poesia não perde tempo”, afirmou. Enquanto a prosa se vale de aspas, travessões e reticências, a poesia se livrou de tudo o que parece supérfluo. Não pensamos com todos esses sinais ortográficos, e sua escrita quer se aproximar do fluxo do pensamento e da oralidade. Execrou o uso de reticências, que para ele são uma tentativa de conferir profundidade a uma frase ou pensamento. Se a frase ou pensamento não forem profundos, as reticências não ajudarão. E se as reticências são formas de interrupção, então que um ponto só seja o final.

“Os meus livros vem do que eu quero saber.”

“Dizia as coisas para ter coisas, dizia palácios para ter palácios.”

Pirilampo é a minha palavra favorita.”

A minha é libélula


segunda-feira, julho 11, 2011


Ninguém sabia o que fazer em caso de felicidade. Havia seguro de vida, seguro para veículos e para morte ocorrida dentro de veículos. Mas quem nos protegeria em caso de felicidade?

David Foenkinos in Em caso de felicidade.

quarta-feira, julho 06, 2011

O dia em que jantei com Claire Denis



(para Ana)

Todo mundo precisava de um casaquinho no dia em que jantei com Claire Denis. Passávamos pela temporada atípica de inverno no Rio, aqueles poucos dias em que todos nós desejamos o verão de volta, aqueles poucos dias em que relativizamos o conceito de meio-dia em janeiro, aqueles breves instantes em que todo mundo tem um resquício de naftalina na pele e uma jaqueta de couro no figurino.

Uma semana antes do dia em que jantei com Claire Denis eu não fazia ideia de quem era Claire Denis, ou melhor, não fazia ideia de como era o cinema de Claire Denis. Também não conhecia alguém que viria a me emprestar um dvd de Claire Denis, tampouco imaginava que uma música da Corona viesse a fazer parte da minha lista de Prozac Songs. Uma semana antes do dia em que jantei com Claire Denis, eu não podia imaginar que uma música da Corona coubesse num filme francês inspirado em Melville, e que essa cena se tornaria pra mim o perfeito sinônimo de dancing with myself

Eram tempos bons aqueles que precediam o dia em que jantei com Claire Denis. Eu experimentava novidades que me enchiam de alegria, sorria pelos motivos mais prosaicos, fazia test-drives em concessionárias e lidava bem até com piadas de vendedores da Volkswagen. Eu acordava cedo pra tomar um café da manhã consistente e cantava as curvas da estrada de Santos enquanto era a única babaca a obedecer os limites de velocidade do aterro do Flamengo, e até o trânsito era motivo de felicidade: eu chegava atrasada na natação, deixava de nadar 200 metros e me dedicava à discografia completa do Rei. Eu havia me tornado uma daquelas pessoas felizes e completamente irritantes que tanto detesto, mas nem isso me abalava: a vida era boa no dia em que jantei com Claire Denis, o prato thai preparado por um cineasta era ótimo, e uma ou duas conversas que se iniciavam naquela noite eram ainda mais promissoras.

Mas a vida tem suas surpresas, e no dia em que jantei com Claire Denis eu fui abordada por alguém que não entendeu que eu não estava a fim de elucubrações complexas sobre a vida, a literatura ou a procedência de sotaques. No dia em que jantei com Claire Denis, e em todos os outros dias da minha vida em que nada ou ninguém acontecem, eu não queria conversar sobre bloqueio de escritor, ou sobre seu processo criativo de escritor, ou sobre qualquer outra pauta que envolvesse teorias ou critérios demais sobre o ato de escrever. No dia em que jantei com Claire Denis, eu tentei explicar ao meu interlocutor que eu não tinha qualquer propriedade sobre o assunto, que escrever, pra mim, não era uma Questão que precisasse de maiúscula, que eu nem mesmo iria à Flip e que menos ainda eu sabia porque o valter hugo mãe insiste em só usar minúsculas. No dia em que jantei com a Claire Denis eu estava muito mais interessada em perceber como o efeito físico das emoções arrebatadoras, sejam elas boas ou ruins, causadas por cenas sublimes ou grotescas, são irremediavelmente as mesmas (pernas fracas, revertérios no estômago, levitação). Eu olhava desesperadamente pros lados procurando o Pedro ou o João Manuel, que com sorte entenderiam meu código e iriam me resgatar com a desculpa esfarrapada de consumirmos algo no bar. Até mesmo a Cuba Livre sem gosto que estavam servindo àquela hora me parecia mais atraente do que aquele papo intelectualoide que eu tentava a todo custo evitar.

No dia em que jantei com a Claire Denis lamentei o fato de ter me tornado uma pessoa simpática e comunicativa que não sabe como se desvencilhar de gente mala. Ir ao banheiro teria sido a solução. Eu pensava em como seria boa a explosão de um bueiro naquele momento. Ou um ataque antropofágico.

No dia em que jantei com a Claire Denis deixei duas pessoas falando sozinhas, fiz passos de dança excêntricos quando o dj colocou The Rythm of the Night na pista e não consegui retomar as conversas promissoras que se haviam iniciado antes que eu fosse interrompida pelo tal sujeito. No dia em que jantei com Claire Denis eu não troquei uma palavra com Claire Denis. Voltei pra casa embriagada num taxi com a certeza de que na estrada de Santos eu não vou mais passar.