terça-feira, março 27, 2012

R.I.P

Para Bebel


- E então, como você está? Como foi tudo?
- Estou achando tudo bem mais complicado do que imaginei que ia ser.
- Demora pra entender, né? Pra passar mais ainda.
- Muito.
- E não tem indenização...
- Não tem... Acho que levei umas cantadas na saída do cemitério.
- Como assim?
- Assim mesmo.
- Mas é permitido?
- Bom, que eu saiba não é proibido...
- Mas é meio bipolar, não acha? O cara se acaba de chorar e de repente vira pro lado e te passa uma cantada?
- Completamente.
- O que ele disse?
- Ele era o Paulão. Ou Carlão, nunca sei.
- Quem é esse?
- O da natação, falei dele outro dia, lembra?
- Ah claro, o Paulão! Que puxa assunto com você no elevador, né?
- Esse. 
- Ele te canta de manhã vestindo touca e também no cemitério? Esse cara te ama! 
 -Ele me cumprimentou e eu demorei pra entender que ele era ele. E de repente ele diz “estamos aí, dentro e fora das piscinas”. Não sei se foi uma cantada, mas dado o histórico do sujeito...
- Ele estava com cara de sedutor?
- Estava. Acho que sim. Eu estava meio embaçada, não deu pra ver direito.
- E você não correspondeu?
- Eu não estava lá muito em condições de corresponder a muita coisa. Mas não, definitivamente. Paulão ou Carlão não me convence.
- E depois?
- Depois eu fui apresentada pra alguém, achei que era uma coisa de praxe, sabe quando você chega num grupinho e tem um cara desconhecido e um amigo te apresenta?
- Sim.
- Aí na missa de sétimo dia eu fui descobrir que não, que tinha sido apresentada pro fulano porque ele me achou interessante.
- Meu deus! Você é a musa dos velórios!
- Acho que sim.
- Um pretinho básico não é um pretinho básico à toa, afinal!
- Acho que não.
- Já que a gente ta falando disso, eu queria conversar com você.
- Sobre a Chanel?
- Não boboca, sobre o meu velório!
- Fale.
- Jura?!
- Juro, ué.
- É que já tentei essa conversa com o Simon mas ele nunca quer me ouvir, e sinto que preciso passar as instruções pra alguém. É sobre a minha partida. Eu quero ser cremada.
- Ah eu também.
- E não quero que as minhas cinzas fiquem no cemitério. Quero que elas sejam espalhadas por vários lugares: Rue de Rennes, Palais Royal, na minha Barra da Tijuca... onde mais?
- Bon Marché? Cherche Midi?
- Boa, ali na calçada! Em frente à National Portrait Gallery. Não me deixa apodrecer no cemitério, pelo amor de deus. Eu quero ser cremada, Jules! Promete?
- Prometo. É bem mais higiênico.
- E minimalista também.
- Mas será que vão me deixar embarcar com suas cinzas no avião?
- Claro que vão.
- Será que eu ainda terei condições de viajar de avião?
- Claro que vai.
- E se eu estiver esclerosada?
- Se bem que com essa sua coluna aí...
- E se eu morrer antes?
- Você não vai morrer antes porque você vai ter que falar no meu funeral.
- Tipo um discurso?
- É, todos os amigos vão ter seu momento. Você, Beto, Carol...
- Pfff, a Carol no seu funeral, essa eu quero ver. Quer dizer, não quero, prefiro morrer antes de você. E é melhor também você passar essas instruções pro Marcelo, que é mais novo e tal. De repente ele canta no velório.
- Fantástico. Será que a gente consegue a Beyoncé pro meu funeral?
- Acho que você ta sonhando muito alto.
- Tradução simultânea vai ser necessária. Cada um que chegar vai ganhar um fone. O Fred pode fazer meu cabelo. Temos que pensar em alguém pra fazer a maquiagem.
- E o figurino?
- Meu vestido Lanvin.
- Você vai entrar no forno usando um Lanvin?
- E meu batom coral.
- Sou contra.
- Mas o batom coral me cai como uma luva...
- Sou contra queimar o Lanvin. É uma heresia.
- Tenho que pensar em mais lugares pra espalhar minhas cinzas. Onde você quer que joguem as suas?
- Tanto faz, acho que pode ser numa praia qualquer.
- Que desapego, Jule!
- Desapego é cremar o Lanvin. E de qualquer forma, pelos seus planos, você já vai estar morta quando chegar a minha vez.
- Vai sobrar tudo pro Marcelo. É melhor eu ter essa conversa com mais gente, pra ele não ficar sobrecarregado. Vai ser lindo! Marcelo cantando e você lá fazendo os corações idosos suspirarem.
- Haha acho que não. Será que a gente morre e se encontra de novo em algum lugar? Eu ficaria mais tranquila sabendo que a gente ainda se vê de novo. Que de repente dá tempo de dizer pros outros o que a gente nunca disse aqui. Que de alguma forma a gente consegue remendar umas coisas.
- Você acha que deixou de dizer coisas pra ele?
- Tenho certeza que sim.
- Você acha que teria sido diferente?
- Às vezes acho que sim. Outras vezes acho que foi do jeito que poderia ter sido. Mas ficar com essa dúvida é uma corrosão.
- Acho que é assim, Jules, com todo mundo. Mas não conforta muito saber, né?
- Acho que não.
- Posso fazer alguma coisa?
- Pode. Morrer depois.
- Eu morro antes e isso é inegociável.
- Então me faz rir muito até lá?
- Prometo. 
- Te amo. 
- Eu também.  

8 comentários:

Bebel disse...

Fica tranquila que vai ser servido pacotes de oreos para os convidados!

Leticia Wahmann disse...

Tá demais esse papo ! Tinha que ser coisa da Bebel !!!

Rita disse...

Sensacional. Essa conversa é o tipo de conversa que eu teria, e esses são problemas típicos dos meus pensamentos cotidianos. E nem conheço a Bebel, mas entendo a agonia e simpatizo. Prometo que se eu estiver por aqui ainda me esforço pra supervisionar e garantir que seja tudo ela quer. Consigo inclusive a Beyoncée.

Bruno Quintella disse...

Musa de velório é uma metáfora?

Julieta disse...

é o meu novo emprego, Bruno Q.

Anônimo disse...

Adorei o texto. Pedro W. me sugeriu lê-lo, e fiquei, mais uma vez, muito contente por testemunhar uma prova do seu talento! Regis

Julieta disse...

Regis, que honra! Seu elogio vale por muitos. beijo grande!

NUNO VIEIRA disse...

Muito bom Julia!
" Tradução simultânea vai ser necessária. Cada um que chegar vai ganhar um fone" .ahahah.
Nuno