quando tem o seu cheiro
dentro de um livro
Dentro da Noite Veloz.
Adriana Calcanhotto em Vambora
“Pela passagem de uma
grande dor”, página 36: é o quarto conto de Morangos
mofados, reeditado há 8 anos atrás. Meu exemplar já guarda certo cheiro
de tempo.
Li Morangos dia 15 de
novembro. Em dezembro uma amiga leu o meu livro: eu pedi que ela
escrevesse seu nome e a data na folha de rosto, debaixo da minha própria marca.
Acho lindo livro de biblioteca, daqueles que contém cartões datilografados por
máquina de escrever, onde se listam os usuários e empréstimos. Daqueles que não
existem mais. Eu achava que o meu Morangos
podia tentar ser antigo. Em julho de 2007 foi a vez da Carol deixar sua
assinatura.
10 páginas antes, e que é
a segunda de “Os sobreviventes”, há 14 linhas sublinhadas a lápis: é o recorde
de intervenções. Talvez eu ainda respondesse que este é o meu conto preferido
da vida. O que pode ser falso. O que pode ser verdadeiro. O que eu posso nunca saber. Mas quando penso num momento
fundador da minha trajetória de leitora, é para estas páginas que eu volto.
Eu estava apaixonada por
um sujeito que era apaixonado por Caio. Isso interfere? Ambos se foram. O amor
ficou. Os amores, todos.
A edição traz, nas páginas
finais, uma carta de 22 de dezembro de 1979, endereçada a Zézim. Outro dia, à
saída da aula, Beatriz e eu concordamos que é a mais bonita de Caio. Ela está,
também, na coletânea de cartas, um volume que roubei da biblioteca de uma amiga
em 2010, e cuja falta ela nunca sentiu. Heresia: a indiferença, não o furto.
Pouco antes da conclusão
com Beatriz, Rodrigo dizia da sua experiência em ler o livro seguindo as
orientações sonoras de Caio. “Pela passagem” pede Satie. “Os sobreviventes”,
Angela Ro Ro. Jacques Loussier Trio executando as Gymnopédies é Satie o
suficiente? Ou seria melhor o Nelson Freire? É a mesma coisa? E especificamente:
qual música da Ro Ro?
Complicado fazer duas
coisas ao mesmo tempo, e o meu livro me causa espirros. E uma saudade, do tipo que rasga: há
8 anos atrás, no café de uma livraria, conta paga, cadeiras arrastadas para
trás: ele tirou do bolso uma flor, dessas roubadas de um canteiro na esquina.
Murcha e despetalada, foi a primeira de uma série.
Na parte interna da
contracapa de Morangos mofados anotei o telefone de alguém. Semana passada apaguei o número dele do
meu celular.
2005 foi um ano bom.