segunda-feira, março 25, 2013

Quem mexeu no meu pavê



A piada é óbvia, clichê e manjada, mas inevitável em se tratando de uma pequena ode a doces: madeleines não me fariam escrever sequer 7 linhas, quanto mais o grande romance da modernidade. Não que eu tenha pretensões. O que eu queria mesmo era engordar, e no meu cânone alimentício não há espaços para delícias proustianas. Meu elenco seria feito de uma torta-mousse inesquecível, exageradamente consumida entre os anos de 1996 e 1998. Ou um pouco antes, ou um pouco depois.

Do que me lembro dela: o preço exorbitante de R$ 5,00 por fatia obrigava-nos a dividir uma, a minha melhor amiga e eu. Com o mesmo valor, naquele tempo, comprava-se uma oferta inteira do Mcdonalds por pessoa, um festival de açúcar e gordura trans individual, pra agora ou pra viagem. A torta-mousse era bicolor, composta de chocolates preto e branco, e ainda carregava outro binarismo, porque era uma mistura de bolo com camadas mais pastosas. Era recoberta por raspas de chocolate que se volteavam nas extremidades, e sempre pedíamos “uma raspinha a mais”. Sentávamos na mesa redonda e pequenina que imitava mármore. Talvez fosse de mármore. Não sei se é possível descrever sabores, e talvez muito menos o deleite que aquilo proporcionava. As sextas-feiras eram feitas daquele momento, as quintas-feiras eram esperas e os sábados suspiros, nunca literatura.

A sentença se materializou em faixas vermelhas na vitrine: queima total. Godiva-less. Detalhes da despedida se ofuscaram nas minhas lembranças, ensombrecidos pelo luto do qual nunca me refiz completamente. A derradeira fatia da torta-mousse: diria que choramos, o que daria uma ficção overdramática. Comemos, este é o fato. E nos apegamos como pudemos ao pavê de chocolate branco do Amor aos Pedaços.

É claro que não foi do dia pra noite, pois essas transições levam tempo. Fizemos o jejum necessário para que o novo vício se consolidasse. O pavê do Amor aos Pedaços oferecia algumas poucas vantagens em relação à defunta: era possível escolher o tamanho, logo era mais fácil controlar as despesas. Era possível também pedir a tal raspinha, que muitas vezes era acrescentada depois da atendente já ter pesado o doce. E havia mais lojas do Amor aos Pedaços pela cidade, e portanto não éramos mais reféns da expansão do Barra Shopping. Não que nos aventurássemos para o desconhecido, mas havia um alento geográfico na nossa gula.

Não foi apenas a (minha) mudança de colégio que interrompeu as sextas-feiras glicêmicas com a minha melhor amiga. Por uma série de fatores, nebulosos como o último pedaço da torta-mousse da Godiva, comer o pavê de chocolate branco do Amor aos Pedaços deixou de ser um programa, e com o tempo, a idade, os hábitos, etc. deixou de ser algo que eu me lembrasse de fazer. Brigadeiros começaram a parecer a opção mais fácil, e tudo na vida passou a ter esse tipo de funcionamento: mais fácil.

“Tente a torta alemã”, alegaram alguns, em momentos em que confessei meu passado de Amor e Godiva. Tolos. A torta alemã, vulgarizada e massificada, exposta nas mais duvidosas vitrines de padarias e biroscas, jamais teria efeito semelhante ao que os antecessores provocavam. De certa forma, continuei fiel ao pavê de chocolate branco, frequentando mais shows do que gostaria no Canecão, apenas para degustar a iguaria na loja do Shopping Rio Sul. Vezes mesmo houve em que fui ao tal shopping apenas para isso: um pedaço de doce. 

Qual então, foi minha surpresa (e minha conclusão) quando, numa terça-feira, disposta a faltar aula e não jantar para ir até Botafogo, estacionar o carro e apontar pra vitrine onde estariam, lado a lado, o pavê de chocolate branco e o preto, entre merengues, tortas, bolos e afins e declarar: quero inteiro, como outras vezes fiz, a fim de presentear os amigos do trabalho, da universidade e quem mais tivesse estômago, insulina e créditos com a balança; qual foi minha surpresa quando descobri que não existe mais Amor aos Pedaços no Rio de Janeiro. O pavê de chocolate branco mais próximo custa, agora, o preço da ponte aérea mais o táxi de Congonhas até o Itaim.

Neste desfecho desolador, a certeza: toda a trajetória gulosêimica é como aquela das bolinhas-de-queijo: uma luta injusta contra o mundo. 



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