A piada é
óbvia, clichê e manjada, mas inevitável em se tratando de uma pequena ode a
doces: madeleines não me fariam escrever sequer 7 linhas, quanto mais o grande
romance da modernidade. Não que eu tenha pretensões. O que eu queria mesmo era
engordar, e no meu cânone alimentício não há espaços para delícias proustianas.
Meu elenco seria feito de uma torta-mousse inesquecível, exageradamente
consumida entre os anos de 1996 e 1998. Ou um pouco antes, ou um pouco depois.
Do que me
lembro dela: o preço exorbitante de R$ 5,00 por fatia obrigava-nos a dividir
uma, a minha melhor amiga e eu. Com o mesmo valor, naquele tempo, comprava-se
uma oferta inteira do Mcdonalds por pessoa, um festival de açúcar e gordura
trans individual, pra agora ou pra viagem. A torta-mousse era bicolor, composta
de chocolates preto e branco, e ainda carregava outro binarismo, porque era uma
mistura de bolo com camadas mais pastosas. Era recoberta por raspas de
chocolate que se volteavam nas extremidades, e sempre pedíamos “uma raspinha a
mais”. Sentávamos na mesa redonda e pequenina que imitava mármore. Talvez fosse
de mármore. Não sei se é possível descrever sabores, e talvez muito menos o
deleite que aquilo proporcionava. As sextas-feiras eram feitas daquele momento,
as quintas-feiras eram esperas e os sábados suspiros, nunca literatura.
A
sentença se materializou em faixas vermelhas na vitrine: queima total.
Godiva-less. Detalhes da despedida se ofuscaram nas minhas lembranças,
ensombrecidos pelo luto do qual nunca me refiz completamente. A derradeira
fatia da torta-mousse: diria que choramos, o que daria uma ficção
overdramática. Comemos, este é o fato. E nos apegamos como pudemos ao pavê de
chocolate branco do Amor aos Pedaços.
É claro
que não foi do dia pra noite, pois essas transições levam tempo. Fizemos o
jejum necessário para que o novo vício se consolidasse. O pavê do Amor aos
Pedaços oferecia algumas poucas vantagens em relação à defunta: era possível
escolher o tamanho, logo era mais fácil controlar as despesas. Era possível
também pedir a tal raspinha, que muitas vezes era acrescentada depois da
atendente já ter pesado o doce. E havia mais lojas do Amor aos Pedaços pela
cidade, e portanto não éramos mais reféns da expansão do Barra Shopping. Não que
nos aventurássemos para o desconhecido, mas havia um alento geográfico na nossa
gula.
Não foi
apenas a (minha) mudança de colégio que interrompeu as sextas-feiras glicêmicas
com a minha melhor amiga. Por uma série de fatores, nebulosos como o último pedaço
da torta-mousse da Godiva, comer o pavê de chocolate branco do Amor aos Pedaços
deixou de ser um programa, e com o tempo, a idade, os hábitos, etc. deixou de
ser algo que eu me lembrasse de fazer. Brigadeiros começaram a parecer a opção
mais fácil, e tudo na vida passou a ter esse tipo de funcionamento: mais fácil.
“Tente a
torta alemã”, alegaram alguns, em momentos em que confessei meu passado de Amor
e Godiva. Tolos. A torta alemã, vulgarizada e massificada, exposta nas mais
duvidosas vitrines de padarias e biroscas, jamais teria efeito semelhante ao
que os antecessores provocavam. De certa forma, continuei fiel ao pavê de
chocolate branco, frequentando mais shows do que gostaria no Canecão, apenas
para degustar a iguaria na loja do Shopping Rio Sul. Vezes mesmo houve em que
fui ao tal shopping apenas para isso: um pedaço de doce.
Qual
então, foi minha surpresa (e minha conclusão) quando, numa terça-feira,
disposta a faltar aula e não jantar para ir até Botafogo, estacionar o carro e
apontar pra vitrine onde estariam, lado a lado, o pavê de chocolate branco e o
preto, entre merengues, tortas, bolos e afins e declarar: quero inteiro, como
outras vezes fiz, a fim de presentear os amigos do trabalho, da universidade e
quem mais tivesse estômago, insulina e créditos com a balança; qual foi minha
surpresa quando descobri que não existe mais Amor aos Pedaços no Rio de
Janeiro. O pavê de chocolate branco mais próximo custa, agora, o preço da ponte
aérea mais o táxi de Congonhas até o Itaim.
Neste
desfecho desolador, a certeza: toda a trajetória gulosêimica é como aquela das bolinhas-de-queijo: uma luta injusta contra o mundo.
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