“Um amigo meu me recomendou um massagista que é
médium”, disse M., o que não soou tão estranho assim porque tem aquele
personagem que é atendente na padaria e poeta e todo mundo pode ser um monte de
coisas ao mesmo tempo, parece. Isso porque comecei a contar da nova
fisioterapeuta: ela ficou comigo duas horas, DUAS horas, me virou do avesso, apertou tudo o
que era passível de ser apertado e rabiscou meus pés e minhas costas (e não
apagou depois), em todos esses anos nunca vi isso, e discorreu longamente sobre
travesseiros, alturas, texturas, rolinhos alternativos, tecnologia da Nasa,
plumas, deitar de lado só se abraçar um lance, de bruços nem pensar, de barriga pra
cima é mais recomendável. Antes de dormir pensei: fudeu, vai ser pior do que se
tivesse alguém ao lado, fosse sobrinho ou amante ou qualquer outra pessoa que
eu ficaria monitorando de cinco em cinco minutos.
Uma vez acordei com o edredom meio queimado porque
adormeci em cima de uma bolsa elétrica dessas que em 1 minuto ficam quentes, em
3 você apaga, em 7 tem ameaça de fogo à própria cama. Uma vez acordei e mal
consegui me mexer porque uma contratura tomava tudo – escápula, romboide,
escaleno, trapézio, cervical, maxilar, ombro, braço, cotovelo –, lado direito
morto, e isso passou a se repetir desde já nem sei mais, pelo menos uns 8 anos,
uma dor crônica que não aparece em radiografias e que é descartada com um “mexa-se
de vez em quando, levante da cadeira, dê uma volta”, como se tudo fosse uma
questão de sair andando pelo escritório, buscar uma água, tomar um café. Uma
vez acordei e pensei que devia haver um serviço para domingos, alguém que se
encarregasse da água, do milk-shake, do pão, do disco do Caetano, do chocolate,
do chá, da Nutella, mas já tem, se chama mãe, mas não dá pra explicar a origem
de todas as dores pra mãe porque umas são ortopédicas, outras não. E não dá pra
evitar as despedidas, o vazio que fica na parede porque você resolve dar dois
quadros de presente antes do voo, o buraco que fica no pé que foi aniquilado
por um salto agulha na noite anterior, e todo o David Bowie que há no mundo, e “Freedom
90” fazendo de copos microfones e da pista de dança casa e dos amigos coração,
e de repente os copos-de-leite que foram levados amarrados uma semana antes na
bici porque o rapaz não tinha troco, nem tão de repente assim porque já fazia
mais de meia hora imóvel no sofá, não resta dúvida, estão marrons.
A anomalia na bacia – coxofemoral, ilíaco, psoas,
adutor, acetábulo – deve ser resultado de hérnia de disco e agora não posso nem
mais cruzar as pernas, nem conversar de lado, nem dobrar a perna esquerda e sentar
sobre ela, e vamos ver, não tenho um diagnóstico, preciso entender como seus
tecidos reagem e seguir uma ou duas hipóteses mas certamente a gente tem que reverter
esse padrão cervical invertido, recuperar a lordose superior perdida, estica
essa perna, vocês que são muito alongados, e vira os olhos como se fosse fazer “pfff”
depois, seu teste de frouxidão ligamentar deu negativo, mas todo esse en dehors na bacia, pombas, pensei, não
serve pra nada mesmo, nem pro balé, porque chegava na altura do joelho e a
rotação sumia como mágica, enquanto ela mete o dedo contra o meu pescoço e eu
vejo es-tre-las e tudo o mais que Carolina não viu, uma rosa, um samba, tudo
lindo. Não faça nada, e eu me contorcia na maca, conforme for te libero pra
natação em duas semanas, mas com ressalvas, não alongue nada sob hipótese
alguma, jamais puxe a cabeça pro lado, tem um clube ali ao lado da sua casa, o
tempo já vai melhorar. Onde será que essa mulher mora? Há séculos não tem
inverno, há séculos estamos em julho.
D u a s h o
r a s , o tempo passa com espaço duplo às vezes, e no domingo eu achava que a
coisa mais triste do mundo era tirar maquiagem porque ainda não tinha chegado esse
dia em que apenas não há possibilidade de habitar meu corpo desconjuntado. Sente-se
bem sobre os ísquios, sinta o chão, as partes moles, as articulações, entregue
os olhos no rosto, não é lindo isso?, ai que saudade das aulas de dança, de Cecilia,
de todo mundo que já foi embora de novo.
“Quero assinar esse feed da fisioterapia”, M. disse, e à noite calculei
que tinha sopa de abóbora para uma encarnação, além de ter contado 12 copos de
requeijão consumidos ao longo de 12 meses. Não é nada, mas talvez seja alguma
coisa.
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