quinta-feira, julho 16, 2015

Xô, chuá!

No fim da aula de dança Paulinha vem e dá aquela coçadinha na minha cabeça, aquela que a fisioterapeuta também fazia quando eu chegava totalmente empenada ao consultório e que funcionava como espécie de prêmio, aquela com as pontas dos dedos pelo couro cabeludo todo, aquela que me deixa num misto de encantamento e invalidez temporária e que, portanto, parece paixão fulminante.

Abro a porta de casa assim, flutuando, mesmo que tenha encarado a São Clemente, e vejo na mesa da sala uma bagunça de farelos e substâncias fétidas que por sorte não foram feitas sobre homeopatia nem literatura. Imaginei uma série de questões mundanas quando resolvi morar sozinha: os serviços que sempre param de funcionar; um possível vício em televisão; fome; alagamentos e/ou vazamentos involuntários; solidão. Definitivamente não adivinharia que sofreria de macacos invasores e ladrões de banana, aveia e cream-cracker.

As visitas começaram pouco antes do meu primeiro verão no Horto: as criaturas entravam e saíam por um basculante que ficava quase totalmente bloqueado por 3 vasinhos de violetas, ou ao menos foi disso que suspeitei, visto que a janela de cima estava constantemente fechada. Rosário, a diarista do 202, um dia me alertou: “Julia os macacos entraram na sua casa e saíram com duas bananas debaixo do braço. Macaco-prego, Julia, grandão assim!” Pelos meus cálculos, era impossível que um macaco-prego entrasse por aquela abertura sem derrubar nem uma folha, nem uma pétala das violetas, o que me fez desconfiar de que minha casa, na verdade, era invadida por gatos. Quando, numa manhã sonolenta, descobri uma marca de mãozinha na parede, na altura correspondente à alça do vidro da janela, desconfiei de que fossem mesmo macacos, treinados pela Socila ou pelo equivalente animal da instituição, afinal a janela permanecia fechada, o que só podia significar que eles entravam e batiam a porta ao sair.

Pasma com a educação e inteligência dos meus macacos, telefonei para um amigo fotógrafo que prometeu me ajudar a montar um esquema de filmagem para flagrar os meliantes. Nos meus devaneios eu teria registros maravilhosos dos macacos em casa, faria edições com uma trilha sonora maneirinha e também fortunas com o novo viral do YouTube. Bel botou fé e disse que faria camisetinhas à la “Sexy Boy”, e desde então a minha vida foi tomada pela música do Air a cada banana surrupiada ou qualquer outro sinal da presença de macacos em minha residência.

Quando dezembro, o calor e as cortinas da janela chegaram, os macacos sumiram e a minha popularidade ficou bastante ameaçada: pessoas me encontravam na rua e perguntavam por eles, os amigos no trabalho apuravam diariamente, mensagens chegavam por redes sociais cobrando as invasões animais no meu apartamento e de repente eu parecia tão desinteressante perante a sociedade, que nem mesmo se preocupava em disfarçar o “então tá” ao notar que eu não tinha nenhum relato novo. Num exercício de livre associação imaginário, as pessoas diriam "Julia" ao ouvirem a palavra "macaco".  Passei a me sentir limitada a essa única possibilidade existencial, e também passei a fechar o basculante. Não foi fácil perder amigos e bananas...

Os macacos voltaram no outono, depois de meses em que me convenci de que a cortina da sala os intimidava. Entrei em casa, peguei o telefone sem fio e no meio da conversa fiquei meio gaga: "Alguém entrou aqui." Um pacote de cream-cracker estava estraçalhado em cima da mesa, pedaços pelo chão. Mas por onde? Como? A porta de correr que isola a área de serviço estava marcada por mãos de macacos. Eu havia usado a máquina de lavar roupa um dia antes, provavelmente esquecera a porta aberta, os macacos entraram pela janela do gás da área e encontraram o caminho livre. Bingo!

Foi nessa altura das invasões que Bruna achou que essa relação estava desigual e que eu deveria ter algum tipo de benefício em troca da alimentação orgânica que involuntariamente oferecia a eles. Minha irmã concordou e sugeriu que eu pedisse uma bolsa-Ibama. De Paris, outra Bel achava melhor eu assumir de uma vez o abastecimento de uma família inteira de macacos-prego. Em Paraty, Lucas ria enquanto eu tentava me desviar das abelhas do Coupé: “Julia e o mundo animal”, ele disse, e no dia seguinte dei de cara com um macaco na minha sala, numa manhã em que não havia dúvida de que eu havia fechado a porta de correr na noite anterior.

O macaco atravessou a cozinha correndo e pulou para a janela do gás da área de serviço, e lá estavam outra vez as pegadas na porta que eu tinha limpado cerca de 8 horas antes. Dei um grito de susto e me sentei no sofá com o coração aos pulos: paixão fulminante e bichos, são diversos os fatores que desencadeiam ataque cardíaco, e quanto eu já escrevia para a minha chefe explicando que chegaria atrasada porque dentro de alguns minutos teria um enfarto, vi o macaco botar a cabeça pra dentro de casa pra verificar se eu ainda estava ali. Ficamos assim durante uns segundos, ele sumia e reaparecia pela janela, como quem quer voltar, eu inspirava e expirava tentando restabelecer o pulso. Aos poucos me aproximei da janela e o macaco, vencido, escapou para o vão do prédio, onde uns 3 ou 4 macacos-prego gigantescos o esperavam. Pareciam gorilas, e calculei que se por um lado a minha popularidade já se estabilizara outra vez, por outro o risco de doenças coronarianas aumentava. Foi quando decidi comprar um trinco para a porta que os bichos abriam sem maiores dificuldades.

Às 7:48 de uma manhã de quarta-feira Edilson, o faz-tudo que usa cardigan, tocou meu interfone. Ele estava com o irmão que não usa cardigan, mas que é igualmente simpático e fã de Nespresso, e tomamos um café enquanto eu explicava pra eles o drama selvagem. Edilson, o faz-tudo que usa cardigan, mas sem cardigan naquela ocasião, e o irmão, começaram a me contar histórias de macacos. Na mais trágica de todas um macaco era encontrado morto numa banheira de um apartamento do Jardim Botânico. Causa mortis: excesso de consumo de xampu. Se não fosse um bom ajudante de faz-tudo, o irmão de Edilson, o faz-tudo etc., daria um bom ficcionista. Às 8:15 Edilson me perguntou se podia fazer barulho com a furadeira: “Vai lá e arrasa, Edilson”, eu disse, pensando que esta é, por enquanto, a única vingança ao meu alcance contra a família barulhenta do apartamento da frente. Larguei Edilson e o irmão e dei a triste notícia para Bel, Bruna, outra Bel e todos os outros amigos que também já estavam apegados aos meus macacos. Tal como John Lennon, anunciei: o sonho acabou.


Às vezes no silêncio da noite eu fico imaginando todas as conversas que terei daqui pra frente: o último livro que li, a praia de domingo, a festa junina da rua, a chatice que é a segunda temporada de True Detective. É uma liberdade que me assusta, até, ter que criar pautas e provar que meu carisma vai além dos macacos, não deixar a peteca cair. Às vezes no silêncio da noite, também, eu fico imaginando macacos adestrados, desses que já deixam a cebola e o alho picados ou que, no auge do devaneio, vêm dar aquela coçadinha na minha cabeça quando não consigo dormir. 


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