segunda-feira, janeiro 26, 2009

O dia em que assei biscoitos

Ameaçava chover no dia em que assei biscoitos, e fazia frio, nem tanto que merecesse meia, nem tão pouco que exigisse biquíni, aquele frio moderado que faz por aqui de vez em quando. O caso é que também não era necessário ar-condicionado, mas no dia em que assei biscoitos vieram, justamente, conserta-lo, de modo que eu tive que deixar a máquina ligada até o defeito aparecer. O defeito eram pingos que não deveriam pingar, e até que o efeito goteira começasse eu precisei de: meias, casaco, spray de garganta.

Tive de prender o cachorro no dia em que assei biscoitos, porque os técnicos da refrigeração eram alvos em potencial para os dentes do cão, que é pequenino e fofo, mas morde com crueldade canelas e panturrilhas. Uma vez preso no quarto, o cão começa sua sinfonia de latidos e choros que causam: irritação, piedade, loucura.

A tarde toda do dia em que assei biscoitos foi passada, então, encasacada, entrando no quarto às vezes para que o cão entendesse que eu não iria esquece-lo (e fizesse algum minuto de silencioso alívio), e tossindo na sala enquanto os homens se penduravam em escadas.

Dada a partida dos técnicos e a libertação do cachorro, pus-me na cozinha com a mão na massa, querendo, esperando, torcendo pra que alguém ligasse e eu sujasse o telefone com as mãos de farinha só para poder dizer “não posso falar, estou assando biscoitos”. Deve ser romantismo, mania de achar bonito as coisas que não sabemos fazer, de pensar que alguma magia pode surgir do simples fato de: beber café, comer sushi, assar biscoitos.

Pronta a massa, arrumei os tabuleiros, fiz bolinhas sem padronização de tamanhos, lutei contra o forno que não queria se manter aceso e saí correndo afoita quando escutei o trim-trim lá na sala, pronto, era ela, uma amiga “você está perto do shopping?”. Não, estou assando biscoitos, eu disse enquanto limpava a mão livre no avental, e ela não entendeu nada. São para consumo próprio, pensei, mas continuaria sendo um fato totalmente descontextualizado.

Esfarelei vários dos biscoitos no chão ao passa-los do tabuleiro para a lata, num destrambelhamento típico dos ansiosos de primeira viagem. A recompensa do cachorro, que passara o dia trancado e ameaçado de abandono, foi comer do chão os biscoitinhos já mornos. Pela dedicação com que se pôs a lamber o ladrilho, arrisco o palpite de que estou aprovada na minha nova aventura.

Aproveitando o resquício do clima temperado que ainda fazia na sala, onde o ar-refrigerado teve que ficar em teste, esquentei uma xícara de água, despejei um sachet de chá e fiquei: vendo um filme pela décima vez, orgulhosa por ter assado biscoitos, engordando com o cão esquentando os meus pés.

No dia em que assei biscoitos concluí: já posso ser avó.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Garoa

Ao barulhinho da vitamina C efervescendo no copo o olho parece que gruda sem querer abrir, não acredito que já é tão cedo de novo. Se fosse outro dia eu ia inventar uma dor de barriga ou enxaqueca pra pular as obrigações, mas hoje não, os últimos ontems foram tão bons que é melhor não arriscar perder mais um. Não sei se tem a ver com Obama ou Alexandre Herchcovitch, parece que a lâmpada acendeu com força incandescente em algum lugar dentro da minha cabeça. Quando a água fica totalmente laranja já estou com o pé no chuveiro. Quando me enrolo na toalha já fico com pena de que tudo tenha que acabar logo. Hoje vai ser um ontem de gargalhadas quando for tão cedo de novo. Tenho até medo de pensar como tudo poderia ser per-fei-to se eu tivesse um casaco de lã bem quentinho, ou você me esperando na saída.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Meus suicídios (vol. 2)

IV.

Eu me suicido toda vez que corto o cabelo. É um cliché tão absurdo que nem tem graça contar. Primeiro começa uma vontade de mudança, enjôo (enjoo?) dos vestidos, das comidas, da sem gracice de dias arrastados sem nenhum sobressalto e então preciso apostar numa ousadia qualquer, e é sempre o cabelo, e é sempre libertador entrar pela porta do salão e é sempre tão corajoso confiar nas tesouras que remodelam as madeixas. Então conto 18 grampos que seguravam os cabelos no alto da cabeça, vejo os cachos caindo e engulo seco, faço cara de “tá ótimo” e viro de lado pra ver melhor, sem prestar atenção na tesoura que chega perto demais e me corta a nuca, o sangue pinga sobre os cabelos já mortos no chão e pronto, estou suicidada, e cada vez que penteio o que restou dos cabelos depois do banho escorre mais sangue da nuca, e isso dura meses até que tudo cresça novamente e eu precise mudar, da próxima vez, penso, pinto de azul.

V e VI.

Eu me suicido toda vez que escuto aquela música de manhã, ao entrar no carro, ligar o ar e ouvir a voz “Take it back, take it back...”. É um suicídio invejoso, começa com uma vontade de ter feito aquilo e parte para uma frustração tamanha de que nunca vou conseguir expressar tudo o que sinto com essa música (e outras). Então faço anotações no bloquinho do carro, penso em dizer que aquela música tem ares de fim de festa, ares daquele momento em que procuro na bolsa o último cigarro do maço e ele está completamente amassado e meio quebrado, mas não é nada disso, talvez tenha jeito de dia seguinte, de acordar e tropeçar já de cara, de topar com um móvel que sempre esteve ali no caminho, mas é muito maior e pior e então meto a cara no escapamento e fico asfixiada, com gosto de fumaça na boca, muito mais que mil cigarros desconjuntados e apago num desmaio, acordo tanto tempo depois, “I don’t wanna wonder whether you care so don't try to woo me, don’t try to fool me. I know all your tricks.”, a música continua lá me arrastando pra lugares cinzentos e fantásticos, então me rendo, canto do jeito que eu sei e pronto, me mato duplamente, dessa vez de desgosto.

VII.

Eu me suicido toda vez que quero me apaixonar de novo. É um suicídio patético porque eu nunca sei se quero me apaixonar porque a pessoa realmente merece ou se é porque já faz tanto tempo, e fico confusa pensando se é mais trágico gostar e não ser correspondida ou se é pior saber que alguém passou em branco, porque aí não uso de desculpas estúpidas para ficar boba e mole, não relembro obsessivamente o beijo que me causou calafrios e não tenho razão pra perdoar os latidos do cachorro. Então começo a comer chocolates numa velocidade assombrosa, esvazio consecutivas caixas e morro por excesso de açúcar no sangue, sozinha desse jeito não tenho por onde escoar tanta doçura.


(ver vol. 1)

terça-feira, janeiro 13, 2009

Considerações sobre miopia

Stress da córnea, acontece com todo mundo que usa lentes por muito tempo, nada grave, uns dois meses sem elas, muita hidratação nos olhos, faça esses exames, seus olhos parecem ótimos para serem operados, é rapidíssimo, em menos de um minuto o laser conserta isso aí, seu grau é baixo.

É, é baixo, mas o suficiente pra não enxergar quase nada, o mundo todo fica como um quadro impressionista visto de perto. E quando vou à praia os óculos escorregam pelo nariz que sua. E tenho de mergulhar com eles na cara mesmo, senão não sei se as ondas estão perto ou longe, e onde encontrar as pessoas na volta pro guarda-sol.

E esse é só o menor dos problemas e dilemas estéticos.

Óculos não combinam com brinco grande, e nem dá pra usar arco. Óculos são ruim pra dirigir porque se saio com os de sol, entro no túnel e fica uma escuridão, e se troco os pares nesse momento fico confusa. E não consigo mais fazer sobrancelha, preciso estar com os óculos na cara pra enxergar os fios, o que impede o acesso a eles. E se tiro os óculos me grudo no espelho, minha respiração embaça e dá no mesmo. E também não pinto mais os cabelos, porque preciso abaixar a cabeça pra enxergar o máximo de raiz possível, portanto olho por cima da armação e não vejo mais.

E me sinto completamente vulnerável e insegura, como se a qualquer momento os óculos pudessem cair ou ser levados e então ai de mim, sento na calçada e esperneio até que alguém venha em meu socorro.

Com a proximidade do carnaval o pânico só aumenta. Vou ter que me fantasiar de nerd.

domingo, janeiro 04, 2009

Praça Pio XI

Depois de tantas horas daquela mesma conversa, ela na poltrona, eu no sofá, os copos se esvaziando na mesma velocidade em que os cinzeiros se enchiam, os planos na mesa dividindo espaço com as últimas flores do vaso, a luminária acesa no canto da parede, os sapatos largados sobre o tapete, começamos a escutar o barulho da chuva, suspiramos ao mesmo tempo e combinamos ter mais disciplina. Precisamos parar de quebrar tanta louça em casa, e saber quando é hora de trocar o óleo do motor. Precisamos conseguir guardar algum dinheiro, pra conhecer New York ou comprar à vista um vestido, um quadro para poetisar a parede, uma cortina para poder dormir até tarde aos domingos. (Precisamos de mais domingos como esse). Combinamos de combinar um jeito para termos certeza que ambas cumprirão sua parte no acordo, e de combinar também sessões de filmes bobos e alegres, depois dos quais esqueceremos um pouco de todo esse assunto sério, relembraremos antigas paixões e selaremos o contrato final: deixaremos as portas abertas, e saberemos quando esquecer o guarda-chuva em casa.




"- Toque nela com cuidado - disse Santiago. - Senão ela foge.
- A coisa ou a pessoa?
- As duas. "

Caio Fernando Abreu.




obs. este blog não segue o Acordo Ortográfico (por tempo indeterminado).