sexta-feira, outubro 30, 2009

É festa no outro apartamento

Então nunca mais: nunca mais um milk-shake na praia colorida de pipas alheias aos teus braços enroscados nos meus, nunca mais teus jeans surrados debaixo dos meus vestidos intermináveis, nunca mais flores que saem dos teus bolsos para os meus, nunca mais tua rouquidão às três da tarde, nunca mais juntar nossa paixão desmedida por Vinícius, nunca mais os teus pratos cheios de sushi enquanto eu tento decifrar alguma coisa em você, nunca mais tua alegria com a tua vontade de dançar, nunca mais tuas demoradas conversas no telefone enquanto eu te olho e resolvo onde, meu deus, onde te encaixar nessa minha vida, nunca mais tuas paredes cheias de cor, nunca mais teus cabelos dentro das minhas mãos, nunca mais tua imitação de Jards Macalé, nunca mais o barulhinho do vinil rodando mudo na vitrola ("tá fazendo um ano e meio amor / que o nosso lar desmoronou"), nunca mais te telefonar para aplacar desamparo, nunca mais te encontrar pra me deixar largada no teu peito, nunca mais te avistar estatelado na areia teus lábios se descortinarem num sorriso largo, nunca mais tuas mãos despudoradas que faziam do meus rosto teu império, nunca mais tua mansidão, nunca mais teu abraço enorme e cheiroso que punha fim a qualquer uma das minhas tentativas de raiva contra você, nunca mais declarações de amor descabido entre dentadas num filé-com-queijo, nunca mais teus (meus) apelidos cafonas, nunca mais toda a bagunça que você deixa quando parte sem aviso, nunca mais me sentir possível ao teu lado, nunca mais te ter no banco do carona, nunca mais essa saudade lancinante que ataca toda vez, nunca mais essa vontade de conversar por horas a fio e afinal te deixar improvisar monólogos só pra ficar quieta e ouvir tua voz, nunca mais o teu carinho derramado em cada olhar, nunca mais aquela dúvida que a gente tem de não saber o que fazer um com o outro, nunca mais esse teu jeito de falar como quem sublinha palavras, nunca mais toda uma felicidade que eu nem sei mesmo se um dia eu senti com você, nunca mais essas apostas que a gente fazia em tardes de janelas trancadas pro mundo, nunca mais tardes de janelas trancadas pro mundo, nunca mais, então.


:: Acontecimentos - Marina Lima

sábado, outubro 17, 2009

Cry me a river

Respeito muito minhas lágrimas, a ponto de categorizar meus prantos e saber que todos, ainda que inúteis, são necessários. As noites me proporcionam esse sono pesado que se inicia banhado delas, porque é sempre antes de dormir que tudo dói e assenta no corpo, e portanto é preciso chorar. Sem esforços, sem dramas, só é preciso deixar que escorram gotas, que elas tombem sobre o travesseiro, que elas levem alguma coisa pra fora. Prevejo os olhos inchados no dia seguinte, as perguntas desconfiadas de quem os notará mais vermelhos, as respostas evasivas de “alergia, logo passa”. Me dedico ao ato de chorar com a mesma entrega que tenho para a dança porque quero a exaustão que vem depois, e a tranqüilidade que se segue.

O princípio do espanto é quando o oftalmologista diz que a qualidade da minha lágrima é péssima. Ele sentencia o diagnóstico com calma, como se o mundo já não fosse absurdo o suficiente, como se tal afirmação fosse tão natural quanto ter cárie aos 11 anos. Em seguida ele acrescenta que a quantidade de lágrima produzida é a esperada. Enquanto ele mostra imagens pouco convincentes dos meus olhos cheios de nervos inflamados e lágrimas não-lubrificantes, lembro dos tempos em que o ortopedista dizia que todo o problema das articulações era que eu tinha crescido rápido demais. Lembro, ainda, de uma fisioterapeuta que sequer me conhecia afirmar que a minha cabeça estava fora do centro de gravidade.

Como se a conformidade fosse a única reação possível, evito a conversa que eu poderia ter com o oftalmologista. Eu poderia argumentar que, sim, eventualmente chorei lágrimas podres justificadas por motivos ainda piores. Eu poderia, sem embaraço, contar que despejei litros de lágrimas de raiva quando o que eu mais queria era apenas disparar tiros de revólver contra alguém. Eu não hesitaria em apontar todas as lágrimas escorridas por causa de amores insólitos, términos covardes ou declarações pela metade. Eu poderia ter dito, também, que o crescimento acelerado não me havia transformado numa pessoa mais culta ou mais madura, que a minha altura repentina não tinha feito mais por mim que o curso da faculdade, e que as articulações eram, portanto, o malefício menos importante dentro de todas as metáforas que eu conseguia listar na minha cabeça torta, fora do eixo de gravidade. Eu adoraria cometer o clichê mais idiota e sem graça e afirmar que sim, tenho a cabeça mesmo no mundo da lua, e gerar aquela cara enfadada e constrangida de quem se vê obrigada a encerrar a conversa por motivos de força maior.

Isso tudo eu poderia ter dito a ele(s), mas não disse. Fiquei mais pobre por causa de todos os colírios e de toda a fisioterapia que se provou tão ineficaz quanto chata. Fiquei, também, mais obcecada com listas (músicas que contém a palavra “lágrima”: 7; a palavra “tear”: 8; a palavra “cry”: 15) e mais perplexa com o descuidado alheio em proferir frases que podem perturbar uma pobre alma. Tenho a plena certeza de que continuarei chorando em vão, literal e metaforicamente falando, com o agravante de que logo após de secarem as tormentas terei de correr para a geladeira, onde agora mora um colírio milionário, este que restabelecerá meus nervos ópticos (quiçá os outros todos).

Que me deixem chorar, com ou sem qualidade, e que os dias chuvosos se estendam ainda por mais tempo, que perfeição maior eu não consigo imaginar: já pensou que ridículo os soluços pós-choro na praia?

sábado, outubro 10, 2009

O desabotoado céu - vol 3.

Foi mais por causa de Led Zeppelin do que pelo tempo, e me peguei pensando em chuva muito antes de desabar o toró. O caso é que suas duas músicas onde a palavra “rain” consta dos títulos foram precisamente as únicas ocorrências de felicidade daquela semana em que sol nenhum adivinhou o que eu queria, porque, de verdade, ele nunca adivinha.

E porque só a Rita poderia entender a questão e ainda tomar partido dela, enviei por email uma lista de 21 canções que contém o termo inglês no título, para saber se todas são tão brilhantes quanto aquelas, e algumas de fato são, e outras são só outras. Seguimos na empreitada e criamos a tradução da lista, com músicas que contém “chuva” no título (14, valendo uma corruptela para não negligenciar “Chovendo na Roseira”).

A obsessão foi além, a Rita não desligou do assunto e passou dias a fio escutando Plant e Page, e naquela semana me enviou mensagens onde tentava encontrar a melhor canção para escutar na seqüência do Led Zeppelin. Unânimes, resolvemos que só Janis Joplin poderia fazer isso com perfeição, sem estragar ou quebrar o clima. Mas de repente empacamos e eu comecei uma pesquisa ensandecida pela playlist perfeita, o que ainda está em curso e julgamento.

Minhas manias atacam especialmente nesses dias molhados, e agora que dilúvios já me deram lição de moral suficiente para não mais arriscar a vida de meus sapatos por aí, uso o cachorro como esquenta-pés, invisto no meu relacionamento com a atendente da vídeo-locadora e, claro, dou asas à minha síndrome de Rob Gordon. Não estipulo, porém, um all-time-top-5 como ele o faz, e sim reúno a maior quantidade de alguma coisa (preferencialmente inútil) numa lista que nunca tem fim: ditados populares que envolvem animais (39), músicas que contém dias da semana no título (12 em inglês, 5 em português), bandas que começam com “The” (24, mas me pareceu chata no meio), cremes hidratantes para as mãos que já testei (6), músicas com nomes próprios no título (48).

Quando algum resquício de sanidade volta à minha cabeça e eu preciso atender o telefone ou beber água, penso que já escrevi tanta coisa sobre chuva e me dou conta de que o temporal deu trégua. É quando decido comer, e percebo que sob as árvores nunca pára de chover. De repente sonho com as calhas da casa de Penedo, que me davam os melhores banhos das tardes de verão.

Mas é primavera, eu não te amo e Santo Antonio nunca veio em meu socorro.

À saída do restaurante um sujeito de boné me aborda, eu aperto a bolsa pensando que é assalto, e só quando engato a primeira marcha é que me dou conta de que ele queria saber meu nome, e de como ficou impossível ser romântica nessa cidade. Suspiro, e me ataca isso que também brota com a água que não pára de cair: saudade. Encho a cara de chocolate-quente e me especializo numa preguiça chorosa, e por fim decreto essa lista que encerra meu fim-de-semana e que só possui um item: pessoas com quem eu dividiria o edredom hoje, e com o lápis já gasto, providencio o conserto: pessoa, você.


vols. 1 aqui e 2 aqui.