quinta-feira, novembro 05, 2009

Das coisas

(outro volume)

Das dores

Cospe um homem de estatura mediana que veste camisa azul à minha frente, deixando sobre a plataforma da estação Cinelândia uma micro poça de saliva e repetindo o gesto que acontecera três horas antes na calçada da Rua dos Andradas, quando um senhor já encolhido pelo tempo deixou seu cuspe sobre as pedras portuguesas.

Cospe uma moça de short jeans, blusa amarela e gorduras localizadas salientes ao atravessar o sinal em Botafogo. Cospe o rapaz de sunga do calçadão num doce (e babado) balanço a caminho do mar, cospe um sujeito que carrega uma mochila pesada perto do posto de gasolina na Barra e é sempre: encher os pulmões e a boca e despencar pelo passeio público a baba incontida que deve carregar consigo alguma espécie de libertação. Deve haver algo de exorcismo numa cusparada, deve haver algo de transgressor, deve ser o exato oposto de engolir sapo, deve ser descarrego de tormentos e, portanto, cogito amanhã bem cedo dar uma bela e vigorosa cusparada em algum ponto da Nossa Senhora de Copacabana, de preferência bem no meio da cara de alguém que mereça.

Do suor

O prenúncio do carnaval é a praia do feriado em que não há vagas, água ou queijo coalho possíveis. Escafedem-se os espaços na areia, as ondas invadem pernas, cangas e bolsas esquecidas e o mar é redenção. Brilham os torsos nus dos jogadores de altinha, anarquizam a beira do mar as crianças, solidarizam-se as gentes apertadas e organiza-se a lista de espera do guarda-sol enquanto alguns sonham com cachoeiras, outros com piscina, outros com estação de esqui. O gesto de devolver os óculos ao topo do nariz é repetido cerca de 40 vezes por minuto, o menor cabelo desconforta, o galão do mate ofusca os olhos e já não se pode ir pra casa antes das quatro da tarde, quando começa a baixar o sol, a dispersão do aglomerado, quando se pode, então, esticar-se, cochilar, morrer de rir.

Dos vôos
Repousam no batente da janela os óculos enquanto deslizo pelo chão meus pés, e desenho em madeira giros e saltos e é como cachaça ou heroína, porque é transporte pra qualquer lugar. Fica jogada num canto da sala a blusa úmida, fica esparramada e delirante a pessoa ao fim da aula, fica a ressaca no carro no caminho de volta pra casa. Fico existencialista e dona de tudo o que é meu: joelho, ligamentos, pescoço, mãos, tornozelos, impulsão, tesão, calma, pausa, ataque,articulações e o melhor: pulso.

Dos laços

Emperram-se muito facilmente os zíperes de vestidos sem uso, amarelam-se as sedas guardadas e a linha sempre arrebenta na última agulhada, impossibilitando o nó que segura a costura, desatando mágoa e lamentos engasgados. Solicito consertos para os sapatos, que precisam de novas solas depois de tanta chuva. Escapam-me as vontades de tentar indiferença, de achar normal, de dizer: tchau, e entrego-me a perder as estribeiras.

Volta, que se você voltar eu prometo que dessa vez eu fico.



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Washing against the lonely tenement has set my mind to wonder
Into the windows of my lovers, they never know unless I write
' This is no declaration I just thought I'd let you know goodbye '
Said the hero in the story ' it is mightier than swords
I could kill you, sure, but I could only make you cry with these words'.

Belle and Sebastian in Get me away from here, I'm dying.

5 comentários:

Rodrigo Gameiro disse...

teu blog tá demais!
Vou passar teu contato para minhas comparsas editoras!
;-)

Bruno Quintella disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bruno Quintella disse...

Das dores

Cuspir no chão é pontuar com a boca as frases da calçada, portuguesa, claro, porque gosto da minha língua. Ponto. Haja dor para tal destreza e para tal atrevimento, por isso busco nos pulmões a inspiração pigarreada na garganta arranhada pela tosse de vírgulas e e exclamações. Salivam-se palavras – diz o cartaz do centro da cidade.


Do suor

Despelar o pé: morte à carne-viva! Brado tais palavras sempre que me esqueço dos chinelos em casa quando vou à praia. Os óculos repousados nas orelhas e na ponta do nariz, formando aquele triângulo isósceles de outras pontas, as de cartilagem, e rumo em direção à orla abarrotada de crianças banguelas, coroas ora pedalando ora caminhando a passos largos um trajeto curto, mulheres fabricadas – e adquiridas ainda na planta – e homens cada vez mais sem pelos. Percorro com os olhos sob lentes escuras o clarão da areia, penso que pode ser arrastão, mas depois reconheço que meu instinto maquiavélico me traiu mais uma vez, era outra rede, era apenas uma tarrafa pescando gente humana: aglomerados de biquinis e sungas à espera de barracas e cadeiras. Que falta me faz o queijo coalho, assim, como sinto saudade de enxergar a areia antes de me esbarrar nas pernas enfileiradas de pessoas que nunca tinha visto antes, como se fosse um tapete de panturrilhas. Faz calor e por isso pesco da mochila o mundo de letras e ponho-me a lê-las, deixando que o calor me faça suar por dentro, porque, por fora, já não é mais notícia.

Dos vôos

Manobro pensamentos, decolo sem autorização, degolo passagens: olhos em queda-livre, porque o sono me passa uma rasteira e acabo voando abaixo do radar. Nem sempre a colisão é risco, por isso sinto-me menos existencialista e me doo: me leve os olhos, o coração, a cabeça, me arranque a memória e o passado, e me deixe aterrissar sem pouso, me permita ser dono de tudo que não é mais meu: minha maior posse é não ter nada.


Dos laços
Esse prefiro nem comentar, para não estragar... ADOREI esse trecho: “a linha sempre arrebenta na última agulhada, impossibilitando o nó que segura a costura, desatando mágoa e lamentos engasgados”.

Beijos, amore mio

Julieta disse...

Uau!!!

Bruno, my love, assim você me deixa tímida e com medo de escrever qualquer coisa depois!

Anônimo disse...

Nice dispatch and this mail helped me alot in my college assignement. Gratefulness you for your information.