sábado, dezembro 25, 2010

Neve, Paris, Rue de Rennes e outras obs.




(voume 1 aqui)

À frente dos ônibus e sob olhares incrédulos, abandonamos o barco. Não hasteamos bandeira, mas a ocasião era épica o suficiente. Tomás, Lilia, Jerome e eu agora só podíamos contar uns com os outros. Não tínhamos mais qualquer apoio ou informação dos funcionários da Air France, o que, a bem da verdade, não fazia qualquer diferença nesse momento.

Uma vez traçado o plano, nos apresentamos formalmente. Eu não descobri tanto da minha pequena infantaria quanto do surfista húngaro que mora na Tijuca. De fato, pouco ficou de cada um: Jerome é um francês de Fontainebleau que casou-se com uma brasileira. Chegou ao Rio em 1997, abriu um escritório de design, divorciou-se, casou-se de novo e agora já contabiliza 10 funcionários em seu negócio. Gosta de aipim, mora em Botafogo e usa o metrô para o trabalho. Tem cabelo liso e castanho, mas não o reconheceria nem mesmo se ele estivesse exposto numa vitrine do Louvre. Tomás tem 24 anos, sua mãe é psicóloga e aparentemente me conhece pois teceu comentários a meu respeito ainda no aeroporto do Rio, sua mãe certamente foi casada com um francês, com quem teve Tomás e que nos avisou sobre a possibilidade das estradas estarem caóticas. Tomás passou um perrengue de ônibus na Colômbia, este é o adendo mais pessoal que posso informar a respeito do líder. Lilia ainda é um mistério: seu marido passa uma temporada em Paris a trabalho, mais precisamente em La Défense. Lilia não fala francês. Aprendeu Espanhol durante uma temporada em que o marido passou em Buenos Aires, a trabalho. Depois de Paris, Lilia vai encarar a Austrália. Além de andante, Lilia é baixinha e vestia preto da cabeça aos pés, e não arrisco mais palpites.

Não, essas coisas todas não foram ditas na apresentação. Foram descobertas ao longo do caminho que nos levou à gare de Nantes, onde também descobrimos coisas sobre um norueguês que mora no Rio há 13 anos e que ainda não tinha entrado na quadrilha. Ele foi nosso quinto elemento no trajeto de ônibus. Nos contou sobre seu barco, sobre sua mulher brasileira, sobre a Petrobras e o Pré-Sal. Eu não teria tanta criatividade pra imaginar um diálogo sobre o Pré-Sal em Nantes com um norueguês. O surfista húngaro que mora na Tijuca já havia contribuído de forma significativa pro inusitado da história.

Nos despedimos do norueguês ao avistarmos a Gare. Em menos de cinco minutos possuíamos bilhetes de um TGV que nos levaria à Gare de Montparnasse, em Paris. A essa altura eu já sabia que o Charles de Gaulle e Heathrow continuavam fechados, e acreditava que tudo se resolveria uma vez que: eu chegasse a Montparnasse, pegasse um taxi, adentrasse o 83 da Rue de Rennes, tomasse um banho, gargalhasse por uma noite e no dia seguinte entrasse no Eurostar com destino a London London, a Camden, a Kensington e à Guinness. Bollocks. O Eurostar não funcionava há dois dias.

Eu fiquei pensando se as pessoas que moram na Sibéria enfrentam esse tipo de coisa. Será que elas estocam provisões e não saem de casa até que passe o inverno? E em Moscow? E em Seattle? E em todo o resto do mundo onde a neve cai em dezembro? Será que essas pessoas tem uma Nantes para chamarem de suas? “Desolée” fazia sentido e me descrevia com exatidão.

Nos separamos no trem, somente Jerome e eu ficamos no mesmo carro, o que explica o fato de eu saber mais coisas a respeito da vida dele. Mas a conversa não foi pra frente: Jerome disse que eu parecia a filha do Chico Buarque e eu achei melhor fingir que estava dormindo. Nos meus sonhos, Tomás, Lilia, Jerome e eu nos abraçávamos emocionados ao chegar à Gare Montparnasse, trocávamos e-mails e promessas de um bom croissant matinal na Rive Gauche e nunca mais nos víamos, na melhor das hipóteses nos adicionávamos no Facebook. Bollocks de novo.

Um trem nunca foi tão revolucionário quanto naquele momento: em duas horas e meia estávamos em Paris. Em Montparnasse. Em duas horas e quarenta e cinco minutos eu estava no 83 da Rue de Rennes. Em três horas e meia eu estava na H&M da Rue de Rennes. 5 dias depois, eu continuo na Rue de Rennes. Chegar a Londres mostrou-se inviável, primeiro por causa do aeroporto, segundo por causa do Eurostar, terceiro por incompatibilidade de agendas. Foto segurando a Tour Eiffel em Trocadéro também se provou complicado.

Eu ando por aqui entrando em cafés a cada quarteirão, não porque procuro discos voadores, a Lilia ou o surfista húngaro que mora na Tijuca. Cada pausa nos cafés é pra que as mãos voltem a funcionar. Neva em Paris. Os telhados e carros estão cobertos por camadas brancas de gelo. Os jardins do Palais Royal continuam em obra, já faz mais de um ano e meio. O metrô continua cheio, fétido e assustador, porém apaixonante. Paris deve ser um deslumbre até cinza, infelizmente não disponho de habilidade pra tirar os dedos de dentro da luva e bater fotos ao mesmo tempo que seguro guarda-chuva e acerto o foco, tampouco disponho de coragem pra flanar pelas ruas, desde que cheguei aqui ainda não vi o Sena. Substituí a Guinness por vinho, Kensington pela Rive Gauche, só Camden ainda não parece resolvido. Cissa parece um pouco inconformada. Eu também.

No fim das contas, na manhã de Natal, o sol apareceu. Apresso o fim desse capítulo para correr até a margem, tirar boina, cachecol, luvas e acionar o timer da câmera. É a quinta vez que estou aqui e não tenho sequer uma foto com a Notre Dame ao fundo. Tem uma música também do Morrissey que não me sai da cabeça: I’m throwing my arms around Paris. C’est La vie!

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Neve, Nantes, o surfista hungaro e outras obs


À minha frente a pequena tela da TV individual oferecida pela Air France exibia o itinerário do vôo, a temperatura externa, a previsão de chegada ao destino, o restante a ser percorrido: 45 minutos. Todos nós, ligeiramente amassados, nos inquietamos um pouco em nossas insuficientes cadeiras da classe econômica. Meu vizinho, que passara o vôo todo dormindo sem nem sequer levantar para fazer xixi, pareceu despertar com a ansiedade de pousar em Paris e seguir até a China, seu país natal. Os brasileiros sentados na fila detrás estavam maravilhados com a possibilidade de ficarem horas no Trocadéro até que a foto saísse perfeita: mãe amparando a Tour Eiffel de um lado, filha do outro.

Eu sonhava com o todo o curry que Londres me reservava. Com Kebabs. Com Camdem Town e todas as camisetas que eu compraria. Com o momento mágico em que eu sairia à superfície e veria as luzes de Picadilly Circus. Com Kensington: eu sonhava com Kensington e com um pint de Guinness.

Eis que então o comandante anuncia que a neve nos impedia de seguir adiante, e que faríamos um pouso em Nantes para aguardar as novidades do Charles de Gaulle. Meu vizinho só entendeu quando o comunicado foi traduzido pro inglês, sorriu amarelo pra mim e aproveitou pra cochilar mais um pouco. Uma vez que o avião estava em terra firme e que comissários e comissárias não sabiam nada além de que a temperatura externa era de 12 graus, resolvi eu também dormir. E dormimos todos, por horas e horas até que o comandante anunciou que o Charles de Gaulle estava pronto para nos receber e que seguiríamos viagem. Comecei a ficar tensa aí: Nantes e a neve me fariam perder a conexão pra Londres. Eu podia vislumbrar minha mala rodando sozinha na esteira de Heathrow. A Cissa telefonando pro aeroporto pra saber se o vôo estava dentro do horário previsto. 

Oh God.

Eu nunca cheguei a Londres. Durante as quase 48 horas que demoraram pra que eu chegasse a Paris, três versos do Morrissey ficaram ecoando na minha cabeça: “and still we say / come back, come back to Camden / and I’ll be good”. Eu dizia calma, estou indo. Mas não estava.

Saímos do avião, buscamos as malas na esteira em Nantes, entramos num ônibus que nos levou a um hotel próximo ao aeroporto. Sim, viramos primeira pessoa do plural quando o comandante, logo após termos apertado os cintos para a decolagem, anunciou que estava “desolé” e que não poderíamos ir a Paris. Os franceses adoram dizer que estão desolés. Acho que é parte da cultura deles, algo como “vamos tomar um chope um dia desses?”

E foi no ônibus que o surfista húngaro entrou na história. Ele perguntou se eu falava inglês e começou uma conversa de amenidades que logo ficou bastante chata, mas àquela altura eu já tinha fugido de uma brasileira chatérrima, do meu vizinho chinês e não podia me dar ao luxo de desperdiçar companhia. O surfista húngaro era louro e parecia saído do Surf Adventures, ou do catálogo da Redley, ou sei, lá, da Califórnia, menos da Hungria. No trajeto do aeroporto até o hotel, uma parte da vida do surfista híngaro se revelou: casara-se com uma brasileira que trabalha no Leblon, na Oi, sabe? Dividia seu tempo entre surfe e kitesurfe, na Barra, perto do Pepe, eventualmente no posto 4, porém lá as pessoas não eram tão bacanas. Morara 4 anos em Dublin, para onde retornava agora pra um curto período de férias e natal, e antes disso vivera em Estocolmo. Habitava, agora, a Tijuca, porém anunciou que se mudaria para o Recreio com a mulher. Eu mal tive tempo de desejar boa sorte à mulher no trânsito e o surfista húngaro que mora na Tijuca começou a contar que vai começar a trabalhar na H Stern e que portanto terá menos tempo para surfar e kitesurfar. Não me atrevi a pensar que ele era chato, não nesse momento.

Dia seguinte, café da manhã às 4h, partida pro aeroporto em comboio às 4h30. Na fila do check in o surfista húngaro que mora na Tijuca veio perguntar se eu havia dormido bem, eu disse que sim, me arrependi de te-lo julgado mal e encarei uma hora e meia na fila. Passei pelo raio-x e vi um tumulto no portão de embarque. Ao pedir informação pro mocinho da Air France, o mesmo orientou que eu buscasse minha mala. Eu disse que acabara de deixar a mala no check in, ele disse que eu pegasse a mala e eu achei que não estava mais entendendo a língua local quando ele informou que o vôo havia sido cancelado, e eu perguntei de novo?? E ele disse “desolé” e era mais do que nítido que ele não estava desolé, en fait, ele não poderia se importar menos com o fato de que Camden, Kensington e Guinness ficavam vez mais distantes.

Pegamos as malas de novo, eu, o vizinho chinês, a brasileira chatérrima, o surfista húngaro que mora na Tijuca e dessa vez fomos informados que a Air France nos levaria de ônibus para o aeroporto de Paris. A previsão era de seis horas de viagem. Todos nos aglomerávamos em frente aos ônibus que esperavam do lado de fora, pessoas acenavam tickets para os motoristas, malas eram forçadas para dentro dos bagageiros e nessa hora tudo parecia um filme onde as pessoas precisavam fugir da guerra e só restavam aqueles ônibus. Até o surfista húngaro que mora na Tijuca virou um bárbaro (ou um viking?) e deu as costas a mim e a todos, garantindo o lugar da sua mala sem se importar com os exilados à sua volta.

Uma vez instalados no ônibus, prontos para a partida, eis que um novo e salvador personagem entra na história. Tomás anuncia que está “desolé” e que não partirá no ônibus conosco, que seu pai informara de Paris que as estradas estavam cheias de neve e que a viagem demoraria no mínimo 9 horas, e que Tomás, que realmente devia estar desolé e não fez uso da palavra à toa, pegasse um trem imediatamente. Um burburinho se forma ao redor de Tomás e eu vou atrás averiguar. Em 10 minutos ficamos reduzidos a um grupo de quatro: e assim, liderados por Tomás, Lilia, Jerome e eu desertamos.  

(a seguir cenas do proximo capitulo: Neve, Nantes, Rue de Rennes e outras obs)

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Diálogos com um sobrinho - vol. 2

Eu achei que teria várias conversas com você, neném, que te contaria desde os primeiros minutos muito sobre a sua mãe, sobre seus avós, sobre como era a praia quando tinha tatuís, sobre as músicas trágicas da infância, sobre ter uma fraldinha preferida que dura até quase os 10 anos. Eu achei que engataria com você um falatório desenfreado em que te mostraria os nomes das cores, as formas dos círculos e que te chacoalharia uma sorte de bichinhos em meio a uma explicação sobre as qualidades de cada um. Eu achei que te leria histórias do meu tempo de criança, mesmo que você ainda não entendesse nada. Achei que teceria com você diálogos e monólogos pra lá de divertidos, cheios de risinhos e interpretações, e que com o passar dos anos você ia pedir sempre pra eu imitar fulano ou beltrano. Achei que eu ia caprichar nas vozes e trejeitos, melhorar o vocabulário e pesquisar novas palavras pra te segurar todas as atenções. Eu não contava, neném, que diante de tanta bochecha e milagre eu ia ficar assim completamente débil, entregue e babona. Um dia eu quero que você saiba como é esse amor grande e impensável. Quando você souber como sentir, não vai querer outra vida.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

O outro vizinho

Era britânico o ruído que vinha do apartamento de cima: entre a segunda e a terceira garfada, mais precisamente, porque era igualmente pontual o meu almoço e calculada a minha fome naqueles dias de tédio. Entrei numa rotina insípida que causava bocejos a quem eu contasse, até que o barulho do 201 me tirou da inércia. Não pense em romances, novelas, ação ou novidades. Imagine que o vizinho de cima trouxe de volta aos meus dias uma cisma comparável à que eu tinha com o porteiro da noite, que deixou de ser alvo das minhas especulações no momento em que enterrei minha vida social. De lá pra cá, quase nada foi alvo de tanto fascínio e incompreensão quanto o vizinho do 201.

Começou como uma curiosidade: me apeguei às marteladas sincopadas do 201. Dia após dia, refeição após refeição, lá vinha o barulho de um martelo esmurrando pregos. Sutil, impossível de ignorar, porém. Batidas leves, empurrões suaves, diários, e mesmo nos fins de semana. De segunda a sábado, pra ser mais precisa, era possível saber que já passava do meio-dia quando o vizinho começava a agir. Empilharam-se semanas até que decidi perguntar pra minha mãe: é, é verdade, já percebi sim, ela afirmou. Mas sua intriga era até blasé perto da minha, que foi acentuada no dia em que a furadeira entrou em ação. Parecia um ritual: eu me sentava à mesa, decidia entre o suco ou o refrigerante e o motor dava início a orifícios que eu só podia imaginar.

Eu vislumbrava verdadeiras galerias de arte no 201, ou uma bela oficina de marcenaria com pequenas colinas de serragem encostadas às paredes. Sonhava, ainda, que ali poderiam se construir barcos, carrinhos de rolimã, charretes ou qualquer outro meio de transporte improvável. Arcas, quem sabe. Então a cada vez que o suposto homem ligava a máquina pra organizar supostas exposições eu perguntava à minha mãe o que ela achava que poderia ser, e no quinto dia ela sugeriu que poderia ser que eu precisasse arranjar um emprego.

Então eu arranjei, mas era em casa, e os barulhos e ofícios do vizinho do 201 não me largaram. Eu disfarçava a minha obsessão perto da minha mãe, eu não queria causar preocupações pois ela ainda sugeriu que eu arranjasse outras coisas além de emprego: namorado, assunto, amigos e principalmente psicanálise. Cheguei a pegar as escadas algumas vezes, mas ficava empacada entre o primeiro e o segundo andar, me achava mais ridícula que uma carta de amor, voltava, punha fones de ouvido. Mudei o horário do almoço só pra poder ouvir com mais precisão e calma os furos e marteladas, só para tentar adivinhar os detalhes.

Alguma coisa na minha fisionomia denunciou que eu andava com o sono desordenado. Eu sonhava com martelos que batiam na minha testa, com pregos que escancaravam meu cérebro, acordava com enxaqueca só de lembrar. Um dia minha mãe me convidou pra almoçar fora. Eu inventei acúmulo de trabalho. Ela insistiu outras vezes, e finalmente percebeu. Providenciou uma caixa de ansiolítico e inspecionou minha boca como fazem nos sanatórios dos filmes. Tomada a medicação, dormi por dias a fio. Eu estava descompensada.

Acordei de um pesadelo: minha casa era invadida por uma horda de senhores de macacão, bigode e furadeiras, eles lutavam pra esburacar todas as paredes e ligavam suas máquinas na máxima potência e por fim o prédio ruía. Senti minha testa molhada, parecia um delírio. Vi o bilhete de minha mãe dizendo que tinha ido ao mercado. Vi o cão estirado no chão, barriga pra cima, vem chegando o verão. Eu não agüentaria um janeiro inteiro de martelos misteriosos, eu não poderia ficar em paz enquanto não descobrisse o que fazia o vizinho do 201. Abri a porta de casa e o elevador aberto me esperava. Um andar. Apenas alguns segundos. Uma respiração. Um toque na campainha. Um tempo que não sei calcular. Nenhuma resposta. Toquei de novo e de novo e de novo. O relógio marcava 13h04. Nenhum som vinha do apartamento, nenhum prego, nenhum martelo, nenhuma furadeira, absolutamente nada, nenhum ruído, e posso jurar que o blim-blom do convite imposto fazia eco. 13h17. Às 14h eu voltei pra casa, minha mãe me recebeu espantada e preocupada com meu sumiço e eu contei. Contei que tinha ido ao vizinho, que precisava saber, que ia mesmo pedir pra entrar em sua casa e quando estava prestes a chorar de desespero ela pegou minhas mãos e disse: você precisa ser forte. Foi assim que soube que o vizinho do 201 não morava mais lá.