segunda-feira, março 07, 2011

Reminiscências

(ou: a evolução da liberdade)

Praia de Ipanema, fevereiro, 2006 –

Orgulhosa de uma trança postiça que me serve de fantasia e alheia a toda a areia que entra pelo tênis, arquiteto com o grupo de amigos qual será o próximo bloco daquele dia. É sábado de Carnaval e bem perto de nós, dois ou três gringos bebem cerveja e observam tudo ao redor. Eles são o Franz Ferdinand, nós somos 6 ou 7 bêbados que resolvem se refugiar no meu quarto quando a chuva começa, porque não queremos nos separar, porque somos o epicentro dessa epidemia contagiante que faz qualquer um aprender a sambar, porque embora ainda tenhamos muitos dias de folia pela frente não queremos desperdiçar nenhum segundo. Acabamos de perder a cabeça juntos, dividindo os últimos toddynhos da despensa e os cobertores quentinhos da minha casa. Antes das seis da manhã a Bebel vai tocar o interfone, parte do grupo vai seguir serelepe para o Boitatá. Você e eu, ressacas e vontades semelhantes, vamos dormir até mais tarde, reintegrando a trupe depois do almoço. 

Búzios, fevereiro, 2007 –

Junto pequenos círculos de diferentes cores de tule com linha e agulha, são os detalhes finais da minha originalíssima fantasia de Colombina. Ela é uma cópia de um modelo da infância que minha irmã combinava com gel de purpurina no cabelo, nos anos 80, sabe-se lá onde. Ao embalo da rede eu alinhavo com calma as rodelas, dou alguns palpites no papo dos amigos cineastas sem poder imaginar que em cerca de uma semana estarei segura e ofegante na estação Carioca após um quase esmagamento em decorrência do Cordão da Bola Preta. Mais um sábado de Carnaval, dessa vez reúno forças para o amanhecer na Praça XV, de onde saio bem depois do meio-dia à procura de Coca-cola, ventilador e relaxante muscular.

Praça XV, fevereiro, 2008 –

É domingo de Carnaval e parte da minha saia de Colombina ficou presa num gelo baiano da Gávea no ano anterior quando ia de encontro a um bloco que não existe mais. Não sei como estou de pé, mas algo me diz que é preciso ter fé mesmo sob dilúvio. Estou de volta ao lugar onde a folia é mais feliz, onde executo pulos e coreografias que independem das minhas pernas.  Algo, porém, mudou. A cerveja não desce, a capa de chuva não impede que meus óculos se alaguem e meus pés afundam em poças até que começo toda a sentir frio. Entro num taxi com vontade de chorar: cadê meu Carnaval de arremesso de serpentinas, de beijos roubados, de alegrias desmedidas, de estandartes e Sanatórios Gerais?

Praia da Barra, fevereiro, 2009 –

Mergulho no mar, bóio e quase não noto quando o celular é levado por uma onda. É segunda-feira e eu não vi o Boitatá passar. Não corri risco de vida no meio da multidão suada. Não deixei rastro de confete ao entrar em casa porque a água das mangueiras de Santa Teresa lavou todas as provas de que estive no Céu na Terra daquele ano. Ninguém desconfiou quando afirmei que não fui às touradas em Madri e descobri como sobreviver a mais um mês de Fevereiro. 

Inhotim, fevereiro, 2010 –

Cansamos de especulações acerca da sexualidade de Zezé e nos refugiamos no meio de obras de arte. É quarta-feira de Cinzas na estrada, um padre e um índio me fizeram perder, um dia antes, a Orquestra Voadora e mais tarde juntos na praça Pio XI preferimos deixar o Último Gole pra trás. Nos recolhemos já foscos, cansados, sem disfarçar suspiros e uma saudade tímida do Empolga às 9h de quatro anos antes. Paramos o carro para esticar as pernas e conferir o mapa. Não sabemos da massa fresca que nos espera pro jantar, tampouco adivinhamos que um quadrado mágico número 5 pode ser mais divertido que entoar marchinhas da década de 30 cercados de gente que ostenta antenas, agora ridículas, na cabeça. Dentro de poucas horas estaremos libertos, convencidos de que podemos viver sem mais um Carnaval e sem toda aquela gente bronzeada e feliz arrastada pelos cordões. Brumadinho é o nosso grito do Ipiranga.

Rua Capitão Salomão, Botafogo, março, 2011 –

Já não me importa o caráter de Aurora, há tempos que o amor de Pierrot e Colombina parece mais sem sentido que qualquer um dos meus ex-namorados e não suplico mais pra que você não me esqueça ou não desapareça. Bandeira branca, amor. Não posso mais, e ainda assim lá vamos nós. Esvaziamos latas de cerveja sem muita convicção e todas as conversas convergem para aqueles anos dourados onde éramos felizes dentro de narizes de palhaço e metros de poliéster, e onde fazer xixi na rua era condição sine qua non dum Carnaval de rua sem banheiros. Entre uma melancolia e outra, a vendedora de cerveja informa que estou resistindo bravamente a mais uma festa de Momo sobre o cadáver de um rato cujas tripas estão para fora. Estamos em frente à casa da Matriz, qualquer menção a Ozzy Osbourne seria plenamente justificável, mas um rato morto com as tripas para fora me põe a correr antes mesmo do batuque começar. Em poucos minutos estou com um grupo de amigos desiludidos gastando fortunas num de nossos restaurantes preferidos. Crônica de uma morte anunciada, somos defuntos cabisbaixos querendo passar adiante todas as idéias de fantasias que prometemos nunca mais usar. Caímos de boca na vodca, uma Madonna e um Robert Smith se juntam a nós, e de repente lá estão novamente o padre e índio do ano anterior, ambos mais velhos, com menos alegorias e adereços. Eu vomito todo o risotto de limão siciliano, horas depois, no aconchego do meu banheiro. Minha bota que, mais cedo, supostamente esmagara as tripas de um rato, repousa na varanda até que a terça-feira de Carnaval me acorde.

Recebo mensagens de amigos que ainda não perceberam que estou liquidada, velha ou tanto faz. Por sorte tenho um vôo a pegar. Amanhã, eu sei: luvas e o direito a uma alegria fugaz: todos os quadros do Hopper só pra mim.

Um comentário:

Desde o início disse...

Mto bom, Honey ! E é isso aí, dane-se a sexualidade do Zezé e o caráter da Aurora.....