quarta-feira, junho 22, 2011

"That's not writing, that's typing." 


Truman Capote, sobre Jack Kerouac.

Outros insultos literários aqui.

segunda-feira, junho 20, 2011

If I can make it there


-       Mas o livro dizia o que, afinal?
-       Dizia o que todos os livros de auto-ajuda dizem, mas esse me fisgou, entende?
-       Não, não entendo. Sinceramente, não entendo porque nunca li algo do gênero e não acredito que auto-ajuda "fisgue" alguém.
-       É, eu sei, eu também sou muito preconceituosa.
-       Não é questão de preconceito, é incompatibilidade. Quem lê Faulkner não pode ler auto-ajuda. Quem lê Camus não pode acreditar nessas coisas.
-       Sei, sei. Mas quem vê cara não vê coração. E Quem ama não adoece.
-       O que?!
-       É o título de um dos livros mais vendidos de auto-ajuda.
-       E é com esse argumento que você vai tentar me convencer? Títulos?
-       Os títulos são o primeiro motivo, uma vez rendida a ele o resto vem, pode apostar.
-       Duvido.
-       Um exemplo: Quando termina é porque acabou. Vai contra tudo o que o Lenny Kravitz nos cantou durante anos e anos. E faz muito mais sentido.
-       Qualquer coisa faz mais sentido que o Lenny Kravitz.
-       Mas eu juro, você vê o resultado. É tipo um grupo de apoio, mas sem a chatice de ter que conviver com as pessoas, entende?
-       Não, continuo sem entender patavinas.
-       Ok, eu vou te explicar. Vou te dar um exemplo prático: eu.
-       Você não é confiável.
-       Claro que sou. Eu fui a cobaia da minha própria experiência. E além do mais, você anda consultando horóscopos, se apegando a planetas e tal. Fé é indiscutível, você devia saber.
-       Ok, vou te dar uma chance. 
-       Caiu nas minhas mãos esse livro que diagnosticava os perfis amorosos e apontava os medos e inseguranças e tal. De repente eu me vi ali descrita em frases meio cafonas, sabe?
-       Depois de anos de análise você foi se apoiar em frases cafonas?
-       Mas é que ali não tem o peso do consultório, nem  o preço da consulta, e nem, enfim. Tanto é que dá certo que eu providenciei dois encontros na mesma semana.
-       Tomou iniciativa e tudo?
-       Exatamente. É isso o que um livro de auto-ajuda deve fazer pela gente, certo? Pró-ativismo!
-       E como foram os encontros?
-       Eu faltei a eles.
-       Você convidou dois sujeitos pra sair e não apareceu em nenhum encontro?!
-       Um sujeito, dois furos. E eu avisei que não iria. Eu realmente estava vivendo dias atribulados. Priorizei outras coisas e...
-       E você quer me convencer de que um livro de auto-ajuda está realmente te ajudando tendo em vista o fato de que nenhum encontro se concretizou. E pelo que eu me lembro, seu problema não era dessa natureza, ele começava sempre depois do segundo ou terceiro encontro.
-       Verdade. Aí é que está a questão. Eu só li dois capítulos do livro. O resto ainda não foi traduzido. Daí que a solução só veio metade, sabe? Eu convidei, mas o segundo passo, o de aparecer, não rola ainda. Fico em pânico!
-       Mas por que essa vontade súbita de ter alguém? Você sempre me pareceu uma solteira convicta.
-       Eu era. Mas outro dia enveredei uma conversa sobre relacionamentos com alguém e tentei convence-lo de que eu era mesmo muito complicada e tal. E que por isso não engatava nada sério com ninguém. Aquele velho “o problema não é você, sou eu”. Mas aplicado a mim mesma.
-       E...?
-       E aí que ele argumentou.
-       Desenvolva.
-       Ele disse que achava muito fácil gostar de mim e tal. Que não podia acreditar que eu era tão difícil assim. Ele foi enfático o suficiente pra eu me convencer de que sou muito mais simples do que sempre pensei. 
-       “Se eu sou algo incompreensível...”
-       “Mistério sempre há de pintar por aí.” A culpa é dele.
-       Se ele soubesse...
-       E ainda mais, não é muita coincidência eu ter que ler dois capítulos de um livro de auto-ajuda que fala sobre dificuldades de relacionamentos quando eu to justamente disposta a trabalhar isso?
-       Tanto anos de análise... Tantas conversas sobre atualizar o outro e você esqueceu de atualizar você mesma.
-       Não fosse o discurso do sujeito eu estaria aqui muito quieta, levando minha encalhada vida adiante, sem nem pensar nisso.
-       Bem, tecnicamente você continua encalhada. E cá entre nós, eu te falo isso há anos. Foi preciso cruzar um oceano pra se convencer?
-       Eu sei, eu devia ter te dado ouvidos. Mas já entrei na aula de alemão, pra ler o restante do livro. Daqui a uns 5 ou 6 anos eu devo conseguir entender tudo. É uma boa perspectiva, não acha?
-       Acho que existem métodos mais eficazes. Tipo aparecer nos próximos encontros que você marcar. Ver que não é tão assustador assim quanto parece sair com a mesma pessoa por duas semanas.
-       Ah mas e a preguiça? Você acha mesmo que as pessoas são tão interessantes assim? Acho que me motivei pelo fato de de repente ter me descoberto muito mais legal do que eu pensava, e menos complicada também, entende? Aí achei que mais gente além das 4 ou 5 pra quem dou atenção irrestrita merecia desfrutar de mim mesma. Mas no meio do caminho mudei de ideia. E fui pra casa gravar um “Auto-ajuda songs” pro Marcelo.
-       Poucas pessoas são de fato mais interessantes que o Marcelo.
-       Raríssimas. E ainda tem a pilha de livros aqui pra ler...
-     Quem mexeu no meu queijo feelings?
-    Que nada. Balzac, Houellebecq, essa francesada.
-       E agora?
-       E agora nada.
-       Não dá pra re-convidar?
-       Até daria. Mas depois de ter amarelado, preciso ler alguma outra coisa pra me dar confiança de novo, entende? Hoje na hora do almoço entrei numa livraria duvidosa do Centro da cidade e fui direto pra gôndola de autoajuda. Confesso que me deu uma certa vergonha.
-       Rá. Eu sabia. Você não frequentaria a auto-ajuda da Travessa, aposto. Muito menos a da Argumento.
-       A da Argumento nem pensar, seria um downgrade na minha imagem. Todo mundo me conhece ali. Não seria mais aceita nem no café. Já pensou?
-       Alors, de volta à estaca zero.
-       Pois é...
-       Mas e esse disco do Marcelo, tem o que?
-       Tudo o que poderia ser classificado como autoajuda se a música tivesse esse gênero. Ain’t no mountain high enough, Tente outra vez.
-       You gotta be?
-       Bad, bold, wiser, hard, tough, stronger, cool, calm, stay together. Imagina tentar ser tudo o que diz essa música? Teria que existir um livro pra cada resolução. A pessoa desiste na terceira palavra e volta pro Lenny Kravitz na hora. Tem Queen também. The show must go on. New York, New York. Tem música mais autoajuda que New York, New York?!
-       Não, não tem. Você devia ganhar a vida fazendo coletâneas bizarras pro Marcelo. Devia haver um modo de isso se expandir em escala industrial.
-     Eu sempre achei. O mundo merecia minhas coletâneas. 
-     Taí, mais um motivo pra você não faltar aos cafés que marcar futuramente. Mas e o disco, fecha com que?
-       All you need is love...

sábado, junho 18, 2011

Bukowski


Hoje é 2003 enquanto atravesso o túnel Zuzu Angel pra buscar Maíra no meu carro com goteiras. Ela vai reclamar do cheiro de mofo, vai querer fumar pela janela e vai ligar pra mais alguém que também vai estranhar o aroma ambiente. Ela vai pedir desculpas pelo atraso e completar a maquiagem enquanto diz que o problema todo é que o furão escapou da gaiola e ela teve que caça-lo pela casa, o que significou o tempo equivalente a 5 ou 6 músicas de Burn To Shine naquela rua pacata do Leblon. Ela aguenta o cheiro do furão mas não suporta o meu pequeno aquário itinerante. Ela tem mesas de MDF no quarto, um livro da Sylvia Plath na cabeceira e 3 namorados. Eu moro na Barra, estou platonicamente apaixonada por um paulista e escuto Ben Harper obsessivamente. Quando o segundo elemento entrar no carro (e ele pode ser Nat ou João) eu vou explicar de novo que sim, aquele veículo alaga e não tem jeito.

Nós vamos terminar a noite com os pés pra cima de uma cadeira de madeira do Tio Sam, com cabelos indomados até que vejam condicionador novamente. Maíra vai cambalear pra casa, eu vou trôpega até outro bairro e no dia seguinte, antes do café-da-manhã, vou tomar banho pra amenizar o cheiro do segundo andar daquela casa em Botafogo onde dançamos até quase derrubar o chão, e onde ainda não existe lei que proíbe cigarro em ambientes fechados.

Em 2009 eu paro meu carro prata na rua sem saída pra onde Maíra se mudou. Quando abrir a porta ela vai perguntar porque não estacionei na garagem. Tem coluna em excesso ali, é melhor evitar. Ela vai dizer que não dirige e portanto não pode opinar. Ela substituiu o furão por um peixe que nada em círculos entre bolas de gude na estante da sala. Ela tem 3 computadores no escritório, uma cadeira de balanço na cozinha e 8 namorados, sendo 2 deles internacionais. Eu continuo sendo proprietária de um automóvel cuja vedação contra chuvas não é competente, invento desculpas quando ele me telefona e me chama pra sair e, em vez de nos esbaldarmos em algum outro segundo andar como aquele de Botafogo, eu traduzo pro francês as cartas de amor que ela dita e que serão enviadas para um dos amados transatlânticos.

Essa semana Maíra e eu não conseguimos jantar, tomar café ou falar ao telefone. Ela mora perto da Cobal com um gato (finalmente um animalzinho cordial), ainda usa os anéis que compramos juntas no Saara e tem 1 namorado engraçado. Eu ajudo o cão velhinho a subir na minha cama, dou um rim pra não sair de casa aos sábados e, confesso, minha senha do banco é a data de aniversário dele.

No início do século XX, quando conheci Maíra, ela fazia o teatro lotar todas as noites. Tinha cabelos cor de fogo, um cachecol bordado inseparável e já gostava de vodca. Nós nos tornamos amigas numa tarde em que os ponteiros dos relógios empacaram por excesso de gelo que caía do céu. O inverno russo era uma merda, só ela me fazia sair de casa mesmo na pior nevasca. Pouco depois eu fugi para Paris para levar uma vida mais preguiçosa repleta de chocolates-quentes. Maíra rodou o mundo com as turnês de Diaghilev e os balés que escandalizaram a Europa dos anos 20. 

Hoje é 2011 e eu escrevo sobre ela usando entre os dedos apetrechos de silicone que prometem evitar o crescimento desses ossos cretinos nas laterais cansadas dos meus pézinhos. Por sorte, nessa vida, escolhemos outras profissões. Não haveria cetim que resistisse aos nossos joanetes reencarnados.

quarta-feira, junho 08, 2011

Lanterna dos afogados, o retorno

(para ler ao som de The Swimming Song – Vetiver)

Eu sou uma pessoa má: eu julgo a indumentária alheia, creio que existem bebês feios, amaldiçoo um ou outro escritor, menosprezo todas as séries do Multishow.

Por outro lado, eu não sou uma pessoa competitiva, de modo que, ao final da aula de natação, quando a professora me informou que eu havia nadado 900 metros, eu não fiquei feliz, impressionada ou desafiada a aumentar a minha marca para 1 kilômetro. Eu continuei esbaforida, achando que aquele esporte servia mais como exercício expiatório de toda e qualquer culpa que eu poderia ter e fiz planos radicais de diminuir meu rendimento para módicos 400 metros.

Freud e todos os outros pensadores devem ter explicações embasadas que justifiquem o fato de eu ter voltado à natação. Os meus motivos são os que seguem.

Nadar é resolver seus pecados em tempo de no dia seguinte poder comete-los todos outra vez. Qualquer xingamento a terceiros se dissolve nas primeiras braçadas e pernadas de crawl. E também, convenhamos, depois de 5 quilos adquiridos em embriagantes e calóricas viagens, e de uma esperança que acendeu as luzes da minha agonizante vida afetiva, ter uma barriga e duas pernas socializáveis virou item de urgência na minha agenda.

Além do mais, a minha nova professora de natação tem cara enfezada e bota fé no meu teatro desesperado, logo, ela não vai me empurrar pro nado golfinho ao menos até o final de agosto, que é quando termina o meu plano trimestral que estupidamente adotei. É claro que tal decisão foi tomada depois de uma aula. Pico de endorfina, sentimento de superação. Sair viva e andando da aula de natação é motivo mais que suficiente pra escrever todo um livro de auto-ajuda: você não morreu sufocada, aguntou firme o figurino patético e o olhar de pena da professora.

Mas vitória mesmo é sobreviver ao professor pró-ativo de hidroginástica. Todas as vezes em que eu alcançava o outro lado da piscina, ali onde dava pra escutar a música do Ed Motta que parecia tocar em looping (“mia, arranha o sol, uuuuuu...), ele tinha na ponta da língua uma frase de incentivo: “no começo é difícil mesmo, depois fica mais fácil.” O que ele nunca entenderia, e eu nem ousaria explicar, é que o “depois” dele tinha uma conotação bem diferente da minha: ele pensava em um mês ou dois, eu pensava em reencarnação. Ele continuava seu discurso otimista, eu pensava em espanca-lo.

Na segunda semana de natação, eu implorei pra minha chefe me prender numa reunião interminável, mas eu era muito nova naquele escritório pra participar de qualquer evento desta importância, e lá fui eu, plano infalível, fingir afogamento antes de completar 200 metros e, sob a alegação incontornável do trauma, nunca mais me arriscar numa piscina.  

sábado, junho 04, 2011

Carta a C.M.

My dear,

Eu e minhas ideias: hoje fui a praia. Hoje é um daqueles dias em que eu poderia ter uma lareira. E eu fui a praia. Daqui do alto nunca dá pra ver o que acontece no litoral, portanto descer à rua é sempre surpreendente, de modo que fui cheia de casacos à clínica de vacinação enquanto todos caminhavam de roupas leves sob o melhor sol que temos por aqui, o de outono. Horas depois eu me defendia do vento, e da areia que subia com ele, com uma revista que ficou pela metade, e com um pedaço de praia dentro. Nem mesmo havia os bravos homens que alugam cadeiras e guarda-sóis (guardas-sóis? Guardas-sol? Meias-calças? Here we go again...) durante todo o verão. Um vendedor de mate parecia com medo das nuvens que surgiam por detrás do Dois-irmãos. Eu me distraí com um poema e quase não percebi.

Eu poderia me especializar nessa coisa de programas insólitos. Passeios de bicicletas que deixam hematomas por duas semanas. Viagens atrasadas porque eu jurava que o voo era num horário quando era no outro. Dormir uma noite em Nantes porque o avião não pode chegar. Perder sua casa uma vez porque planejei voar na pior tempestade de neve europeia dos últimos cem anos. Perder sua casa uma segunda vez porque a minha conta poupança ainda não dá conta de todos os câmbios, e a minha agenda ainda não dá conta de todos os tempos. Operar o olho e ficar com tudo ao contrário. Ir pra aula de natação pra salvar as costas e quase matar os braços.

Eu me distraio à beça com todas essas coisas: os dias, dinheiros, meios de transporte verdes, plural da língua portuguesa.

Hoje eu queria ir de novo à última festa em que fomos juntas...

Ainda nem te contei do trabalho novo e de tudo o que já ri com ele. Eu sei que a gente muda de ideia sempre, que para e pensa de novo, que volta atrás, que retira o que disse, que, horror!, eventualmente cospe no prato em que comeu, que pede desculpas, que inventa uma lista de hipóteses etc. Mas se eu fizesse um resumo dos últimos três dias, diria que tem amor e fascínio envolvido. Penso que não há possibilidade de ser ruim. Dessa vez eu não quero estar errada a respeito disso.

Hoje é um daqueles dias em que eu poderia ter um namorado. Ando tão feliz que agora me parece que isso seria possível. Acho que tocou essa música no casamento: I’ve had the time of my life. Nosso ano começou com fogos, banquete, uma viagem de trem e o melhor croissant de Yville-sur-Seine. Desde então, parece que todos os dias tem tido ao menos um desses elementos. Me parece que é irreversível, que nem saudade.

Putz grila, essa migração, esse fuso-horário.

Tenho um jantar me esperando, e um encontro com novos amigos e vinhos. Ou dois filmes, um chá alemão (sorte que menta é menta, e verde, em qualquer lugar do mundo) e o meu edredom. 

Wish me luck. 

um beijo,