Hoje é 2003 enquanto atravesso o túnel Zuzu Angel pra buscar Maíra no meu carro com goteiras. Ela vai reclamar do cheiro de mofo, vai querer fumar pela janela e vai ligar pra mais alguém que também vai estranhar o aroma ambiente. Ela vai pedir desculpas pelo atraso e completar a maquiagem enquanto diz que o problema todo é que o furão escapou da gaiola e ela teve que caça-lo pela casa, o que significou o tempo equivalente a 5 ou 6 músicas de Burn To Shine naquela rua pacata do Leblon. Ela aguenta o cheiro do furão mas não suporta o meu pequeno aquário itinerante. Ela tem mesas de MDF no quarto, um livro da Sylvia Plath na cabeceira e 3 namorados. Eu moro na Barra, estou platonicamente apaixonada por um paulista e escuto Ben Harper obsessivamente. Quando o segundo elemento entrar no carro (e ele pode ser Nat ou João) eu vou explicar de novo que sim, aquele veículo alaga e não tem jeito.
Nós vamos terminar a noite com os pés pra cima de uma cadeira de madeira do Tio Sam, com cabelos indomados até que vejam condicionador novamente. Maíra vai cambalear pra casa, eu vou trôpega até outro bairro e no dia seguinte, antes do café-da-manhã, vou tomar banho pra amenizar o cheiro do segundo andar daquela casa em Botafogo onde dançamos até quase derrubar o chão, e onde ainda não existe lei que proíbe cigarro em ambientes fechados.
Em 2009 eu paro meu carro prata na rua sem saída pra onde Maíra se mudou. Quando abrir a porta ela vai perguntar porque não estacionei na garagem. Tem coluna em excesso ali, é melhor evitar. Ela vai dizer que não dirige e portanto não pode opinar. Ela substituiu o furão por um peixe que nada em círculos entre bolas de gude na estante da sala. Ela tem 3 computadores no escritório, uma cadeira de balanço na cozinha e 8 namorados, sendo 2 deles internacionais. Eu continuo sendo proprietária de um automóvel cuja vedação contra chuvas não é competente, invento desculpas quando ele me telefona e me chama pra sair e, em vez de nos esbaldarmos em algum outro segundo andar como aquele de Botafogo, eu traduzo pro francês as cartas de amor que ela dita e que serão enviadas para um dos amados transatlânticos.
Essa semana Maíra e eu não conseguimos jantar, tomar café ou falar ao telefone. Ela mora perto da Cobal com um gato (finalmente um animalzinho cordial), ainda usa os anéis que compramos juntas no Saara e tem 1 namorado engraçado. Eu ajudo o cão velhinho a subir na minha cama, dou um rim pra não sair de casa aos sábados e, confesso, minha senha do banco é a data de aniversário dele.
No início do século XX, quando conheci Maíra, ela fazia o teatro lotar todas as noites. Tinha cabelos cor de fogo, um cachecol bordado inseparável e já gostava de vodca. Nós nos tornamos amigas numa tarde em que os ponteiros dos relógios empacaram por excesso de gelo que caía do céu. O inverno russo era uma merda, só ela me fazia sair de casa mesmo na pior nevasca. Pouco depois eu fugi para Paris para levar uma vida mais preguiçosa repleta de chocolates-quentes. Maíra rodou o mundo com as turnês de Diaghilev e os balés que escandalizaram a Europa dos anos 20.
Hoje é 2011 e eu escrevo sobre ela usando entre os dedos apetrechos de silicone que prometem evitar o crescimento desses ossos cretinos nas laterais cansadas dos meus pézinhos. Por sorte, nessa vida, escolhemos outras profissões. Não haveria cetim que resistisse aos nossos joanetes reencarnados.
6 comentários:
Ai que delicia poder reler seus textos... Agora virei mais e mais!!! Saudades tb dessa epoca (nao do seu carro com goteiras hehehe) delicia poder revisita-la por vc.
Vamos nos encontrar!
Mts bjsss
concordo com Nat! E estou toda me achando aqui, por estar nessas linhas e na sua vida! Amo!!!!!
O Murilo Mendes uma vez fugiu de casa e foi ver o Nijinski dançar no Municipal num ballet do Diaguilev.
Beijos
PL
:-)
o encontro está agendado pra quinta-feira, darlings.
Pena que eu não conheço o Murilo Mendes, Peter Lake, senão teria fugido junto!
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