Fiquei muito feliz quando, já
não lembro quando, li uma matéria que anunciava a chegada de um novo festival
de dança contemporânea no Rio, São Paulo e Curitiba. Aqui na cidade maravilhosa
nós vivíamos condenados ao Panorama, consolidado há muitos anos na praça. Não
me entendam mal por “condenados”: a programação do Panorama é sempre riquíssima
e graças a ele diversas companhias (nacionais e internacionais, consagradas ou
consagráveis, clássicas e experimentais, boas ou ruins) pisaram nossos palcos,
parques e jardins. Mas é pouco para uns, esses que, impossibilitados do próprio
movimento, precisam do gesto alheio.
É uma sina: conversando com a
Luiza no balcão nobre do Theatro, falávamos das nossas tentativas de yoga,
pilates, natação e que tais. Mas as coisas não bastam, e tem sempre o momento
em que, numa tentativa de fazer os outros entenderem, tentamos verbalizar essa
falta. Citamos suor, sempre, e sempre falta. Somos como o revés daquela
personagem de Andersen, atrás de um par de sapatos vermelhos que nos restitua
esse pedaço que fica meio morto enquanto não dançamos.
Daí a boa surpresa. Uma empreitada ambiciosa de cinco dias no Municipal. O mesmo programa em São Paulo
e um pocket para o Guaíra, no sul. Cinco dias de um ar condicionado impiedoso,
que deixou congelados (quiçá necrosados) narizes, mãos e toda pele exposta.
Sete companhias, oito performances, duas paixões tão potentes quanto o frio e
um sem número de inquietações temperadas de cachecóis, algumas lágrimas e uma
vontade louca de comprar colônias, batons e xampus.
Minhas notas são mais ou menos
as seguintes.
Shen Wei Dance Arts (dia 1)
A minha primeira Sagração da
Primavera (ao vivo) é a coreografia de um chinês radicado em NY e sou
completamente feliz na plateia. Shen Wei traduz as nuances da música nos corpos
precisos, nos braços a princípio tensos e que aos poucos se descolam da lateral do corpo, nos movimentos que começam por escápulas que se deslocam e nos braços
que desenham e desenham e desenham. Gosto desse corpo ágil, dos fluxos que
detonam novos giros, da forma como o espaço se ocupa. Nos dias seguintes
ouviria comentários como “era só dança”. Não que houvesse menosprezo, mesmo
porque, me parece uma extravagância que ainda se possa só dançar. No segundo
ato entra em cena Folding, que descortina um mundo plástico fascinante. As
criaturas de saia vermelha escarlate se movem lentas. Criaturas da mesma
espécie, mas vestidas de negro, atravessam o palco aos pares, carregando-se uns
aos outros em ângulos que desafiam os músculos abdominais. A velocidade é
sutil, a luz é divina e, embora completamente diferente da Sagração da
abertura, Folding é nitidamente cria do mesmo coreógrafo: estão lá outra vez as
escápulas que levantam ombros, que por sua vez flexionam um braço enquanto o
outro se estica para o céu, numa contorção de tronco que confere sinuosidade e
ainda mais estranhamento aos seres brancos, oníricos, sensacionais.
Hofesh Shechter Company (dia 2)
Não me arriscaria à pronúncia
do nome, batismo do coreógrafo ex-baterista de uma banda de rock. O israelense
de Londres suscita cisões no público e no dia seguinte há quem insinue que
detestamos a apresentação porque havia ousadia demais. Vejamos: o coreógrafo
recupera tradições da dança judaica num palco cujo pano de fundo é uma banda de
percussionistas fardados, guitarristas gélidos e um cantor-ditador que berra
coisas incompreensíveis. A trupe de bailarinos (elenco da Benetton em campanha
da Gap – um quê de David Parsons no ar, algo de Jesus Christ Superstar também) dança, pula, se estrebucha,
subjugada por essa banda opressiva. É possível vislumbrar alguns elementos no meio
de tanto clichê. Gosto da agressividade inicial, mas ao longo da encenação ela
se pasteuriza e parece ensaiada, nada autêntica. Cavando na memória, lembro da
violência de Violet, da Meg Stuart,
essa sim mais possível, com seus sopros que transformavam os bailarinos em
pêndulos. De agora, gosto das posturas, sempre meio curvadas; mesmo quando
erguem braços e mãos para cima ainda resta um peso, como se seus centros
tivessem sempre ligados à terra. Gosto da investigação dos gestos judaicos e de
um ou outro duo que se desenvolve. Quando a frase engraçadinha aparece – “Where
there is pressure... there is folk dance” – os celulares disparam e há um flood
no instagram, e então alguma coisa mais concreta se delineia no meio das
impressões: é tão bobo. A música à la Disney encerra com o rewind do haraquiri que
abrira, constrangedoramente, a peça, sob o letreiro projetado com o título da
coisa: Political mother. “Deus queira que não haja um Political father”, disse
o Reis. Concordei, ainda que não tenha sentido a metade da fúria que ele provou
aquele dia. “A luz era foda”, ponderou o Marcelo. É, a luz era foda.
Peeping Tom (dia 3)
A companhia belga faz cinema no
palco e eu, enrolada numa pashmina que é quase uma manta, procuro posição na
diminuta cadeira para dormir: quando os primeiros personagens adentram o
belíssimo cenário (neve, poste, trailers) e uma das bailarinas (?) começa um
número de contorções, entendo que aquilo não é para mim. Todo mundo ri e eu não
vejo nada engraçado. Quando a dupla de asiáticos entra no palco e o burro de
carga se desequilibra e cai com o peso da bagagem, se desequilibra e cai, se
desequilibra e cai... todo mundo ri muito. A mim parece um reunião de pessoas
mostrando o que sabem fazer. As pequenas narrativas existem para que essas aptidões
tenham seu holofote. Tem gente feliz, que bom. À saída, concordo com a Carla,
que diz: “Não é fácil querer ser Pina Bausch.” Um rapaz da produção comenta com
um colega: “Isso foi uma das coisas mais lindas que já vi nesse palco. Isso e o
Momix.” Uma conhecida para quem dou carona declara ter vivido uma noite mágica,
como quando viu Donka. “É que eu não
gosto de circo”, digo, e ficamos combinadas assim. No dia seguinte, no
trabalho, a Rosana está preocupada com a minha alegria, nitidamente comprometida.
Pensando bem, concluo, gosto dessa polaridade: é sinal de vida. Pior seria todo
mundo ficar indiferente.
Mimulus e Maribor Ballet (dia
4)
As primeiras luzes de Mimulus
se acendem com essa contabilidade desfavorável: ainda que goste do debate e das
falas entreouvidas aqui e ali, gosto mais do êxtase que certas coisas provocam.
Mais do que querer, esta noite eu preciso gostar, por uma questão de
sobrevivência. O ar-condicionado atinge temperaturas intoleráveis e eu estou
munida de 2 pashminas e fé, se não cega, muito míope. Não é preciso mais que 10
minutos para saber que os corredores, bem menos glaciais que o balcão, são a
felicidade de que disponho por ora. Quando saio me esquivando entre as
fileiras, percebo rumores de reclamação, gente bufando à minha passagem. Tenho
certeza que bufavam pelo que acontecia a metros dali, sob as luzes nada fodas
da companhia mineira. No intervalo, Reis e eu discutimos a nossa permanência no
local.
A segunda parte do programa da noite previa um Romeu e Julieta ao som de Radiohead, dançado por um balé esloveno. Ficamos. “Vamos sentar no corredor”,
eu disse, “se quisermos sair no meio vai ser mais fácil”. Ele concordou. O
trauma une as pessoas. Alguns minutos de expectativa, que aumentou à medida que
o vídeo em PB projetado no palco se desenrolava. E de repente: “Fitter, happier,
more productive...” Um ser de outro planeta sola, para assombro dos mortais.
Classicamente deformada, enorme, naturalmente branca como as criaturas de Shen
Wei. Nervosa, rígida, com gestos calculados e uma precisão desconcertante.
Braços e pernas a perder de vista. Meu deus. O que podia ser um desastre prova-se
um presente para nós. Fugindo a qualquer obviedade, as escolhas musicais formam
uma trilha que parece ter sido inteiramente composta para a criação de Edward
Clug. O frio da Eslováquia, representado tão bem pelo sistema de refrigeração
do Theatro e presente nos gestos e movimentos daquele corpo de baile, é uma
porrada. E ainda que o espetáculo de Clung tenha lá seus percalços, não havia
outro destino para nós aquela noite: bênção. Choramos, amamos e chafurdamos em
chocolate quente até de madrugada, sem nem querer conversar muito para não
atrapalhar os rastros que ficaram na nossa carne.
Quasar e Grupo de rua (dia 5 e
último)
Foi no teatro da UERJ onde vi o
Quasar pela primeira vez, num tempo remoto pré-dadaísta. De lá pra cá, os balés
de Henrique Rodovalho foram flertando cada vez mais com o nonsense e o
aleatório, a ponto de todo mundo sair de sua plateia desnorteado, sem entender,
sem decifrar, sem saber porque um amigo não o aconselhou a abandonar um ou
outro trecho. O Quasar na UERJ era uma dança que falava de solidão. Um cenário
que retratava dois apartamentos vizinhos tinha uma parede que os separava e que
era derrubada ao final. Um dos moradores passava uma parte da performance num
conversa telefônica à la disk-amizade não fictícia. O vizinho pedia uma pizza
que, minutos depois, era entregue por um motoqueiro que adentrava o palco sem
ter muita certeza do que estava fazendo. Rodovalho não abandonou o humor. Ao
contrário: se apropriou dele com tal vigor que o público gargalha e aplaude com
vontade. Outro Quasar que vi: um solo que Daniel Calvet dançou no SESC e que
era inacreditável de tão bom e do que o menino, magrinho, conseguia fazer. Ele
era a perfeita incorporação do estilo do coreógrafo: aquela desconjunção
pontuada por chicotadas de cabeça e quebra de articulações e dobras. Mas meu
queixo caiu mesmo com Só tinha de ser com
você, uma dança que se fazia ao som de Elis & Tom, disco dos anos 1970.
O que se passava ali era dança pura, como na Sagração de Shen Wei (ele ficou, não tem jeito): bailarinos
dançavam, e era lindo e suficiente. Sinto saudade desse Quasar.
O deste
festival tem seus momentos: os duos de “Recanto” são belos e pautados por uma
luta gingada, referência constante nas dinâmicas do goiano à frente da trupe. Algumas
piadas me embarcam e está lá o Calvet, desta vez um pouco eclipsado pela
presença de um bailarino que rouba os brilhos. Gosto da Valeska, bailarina que
criou raízes na companhia e tem uma postura entre a empáfia e a ironia.
Debochada, talvez. A trilha sonora pode ter Camille e Céu, entre outros. Uma
piração que não junta lé com cré e que parece entreter os bailarinos e o
público. Para fechar este No singular,
um dos bailarinos anuncia que é chegada a hora que muitos haviam esperado, e de
repente o palco se enche de espectadores que haviam ensaiado uma variação para
dançar junto com o excelente elenco do Quasar. Um flashmob cheio de pompa.
Luiza e eu nos olhamos sem acreditar que perderíamos essa. E lá estava: uma
cabeçada executava a sequência que, em vídeo postado no YouTube, Calvet e
Rodovalho tinham ensinado. Apoteose de quem subiu. Que inveja...
A Dança de Rua de Bruno
Beltrão, reconhecida internacionalmente, abriu as entranhas do palco do
Municipal, deixando à mostra coxias (agora extintas) e a parafernália que
sempre se escondem. Surpreendente, a companhia é formada por uma mulher e
diversos homens. Ousada (agora sim) pacas, a movimentação é aeróbica, parece
luta e as corridas em rewind são vertiginosas (e irônicas pra quem já correu –
muito, em círculos e para frente – em aulas de dança contemporânea), pontuadas
pelos ruídos dos tênis no piso, uma sinfonia incômoda, a buzina do
(prolongamento do) corpo. A rua está ali, numa dinâmica de encontros e perfume
de gangues, por vezes fazendo alusão a um MMA. A luz de Bruno Beltrão também é
foda, e não demora até sua porção Nijinski vir à tona: debandada da plateia.
Salvas as devidas proporções, o coreógrafo fluminense desperta reações como as
que a Sagração de 1913 causou. Apesar
da singularidade da coisa e do trabalho consistente, estou entre aqueles que
desistem da performance antes do seu fim. Acho chato. Parece incongruente, mas
acontece mais do que eu queria: acho ótimo, mas acho chato.
Desdobramentos (dia 6 e
subsequentes)
As coisas funcionam quando
continuam, e este mérito não se pode negar a aventuras como um festival de
dança. Sobreviventes das tosses que furam os silêncios, reféns dos casacos
ainda com cheiro de armário e espectadores acidentais de barracos em balcões — nobres
ou não — somos corpos com mais possibilidades de afetos. A ampliação do
calendário de dança e os fundos de apoio que acenam são luzes para nós que já
fomos fisgados, e uma isca para novas plateias. Queremos gostar e queremos
descobrir beleza, mesmo quando ela não é óbvia. Ao menos, eu quero. A julgar
pelos vídeos e reportagens que agora inundam a caixa de mensagens, e todos com
anexos de uma respiração descompassada, diria: missão cumprida. Reis e eu já planejamos montar um balé ao som de AMOK.
Agora é encontrar calmante até
que a Sagração da Pina abra o
Panorama, no fim do ano. E antes: mel com limão.