sexta-feira, maio 10, 2013

O Boticário (e eu) na dança


Fiquei muito feliz quando, já não lembro quando, li uma matéria que anunciava a chegada de um novo festival de dança contemporânea no Rio, São Paulo e Curitiba. Aqui na cidade maravilhosa nós vivíamos condenados ao Panorama, consolidado há muitos anos na praça. Não me entendam mal por “condenados”: a programação do Panorama é sempre riquíssima e graças a ele diversas companhias (nacionais e internacionais, consagradas ou consagráveis, clássicas e experimentais, boas ou ruins) pisaram nossos palcos, parques e jardins. Mas é pouco para uns, esses que, impossibilitados do próprio movimento, precisam do gesto alheio.

É uma sina: conversando com a Luiza no balcão nobre do Theatro, falávamos das nossas tentativas de yoga, pilates, natação e que tais. Mas as coisas não bastam, e tem sempre o momento em que, numa tentativa de fazer os outros entenderem, tentamos verbalizar essa falta. Citamos suor, sempre, e sempre falta. Somos como o revés daquela personagem de Andersen, atrás de um par de sapatos vermelhos que nos restitua esse pedaço que fica meio morto enquanto não dançamos.

Daí a boa surpresa. Uma empreitada ambiciosa de cinco dias no Municipal. O mesmo programa em São Paulo e um pocket para o Guaíra, no sul. Cinco dias de um ar condicionado impiedoso, que deixou congelados (quiçá necrosados) narizes, mãos e toda pele exposta. Sete companhias, oito performances, duas paixões tão potentes quanto o frio e um sem número de inquietações temperadas de cachecóis, algumas lágrimas e uma vontade louca de comprar colônias, batons e xampus.

Minhas notas são mais ou menos as seguintes.

Shen Wei Dance Arts (dia 1)

A minha primeira Sagração da Primavera (ao vivo) é a coreografia de um chinês radicado em NY e sou completamente feliz na plateia. Shen Wei traduz as nuances da música nos corpos precisos, nos braços a princípio tensos e que aos poucos se descolam da lateral do corpo, nos movimentos que começam por escápulas que se deslocam e nos braços que desenham e desenham e desenham. Gosto desse corpo ágil, dos fluxos que detonam novos giros, da forma como o espaço se ocupa. Nos dias seguintes ouviria comentários como “era só dança”. Não que houvesse menosprezo, mesmo porque, me parece uma extravagância que ainda se possa só dançar. No segundo ato entra em cena Folding, que descortina um mundo plástico fascinante. As criaturas de saia vermelha escarlate se movem lentas. Criaturas da mesma espécie, mas vestidas de negro, atravessam o palco aos pares, carregando-se uns aos outros em ângulos que desafiam os músculos abdominais. A velocidade é sutil, a luz é divina e, embora completamente diferente da Sagração da abertura, Folding é nitidamente cria do mesmo coreógrafo: estão lá outra vez as escápulas que levantam ombros, que por sua vez flexionam um braço enquanto o outro se estica para o céu, numa contorção de tronco que confere sinuosidade e ainda mais estranhamento aos seres brancos, oníricos, sensacionais.

Hofesh Shechter Company (dia 2)

Não me arriscaria à pronúncia do nome, batismo do coreógrafo ex-baterista de uma banda de rock. O israelense de Londres suscita cisões no público e no dia seguinte há quem insinue que detestamos a apresentação porque havia ousadia demais. Vejamos: o coreógrafo recupera tradições da dança judaica num palco cujo pano de fundo é uma banda de percussionistas fardados, guitarristas gélidos e um cantor-ditador que berra coisas incompreensíveis. A trupe de bailarinos (elenco da Benetton em campanha da Gap – um quê de David Parsons no ar, algo de Jesus Christ Superstar também) dança, pula, se estrebucha, subjugada por essa banda opressiva. É possível vislumbrar alguns elementos no meio de tanto clichê. Gosto da agressividade inicial, mas ao longo da encenação ela se pasteuriza e parece ensaiada, nada autêntica. Cavando na memória, lembro da violência de Violet, da Meg Stuart, essa sim mais possível, com seus sopros que transformavam os bailarinos em pêndulos. De agora, gosto das posturas, sempre meio curvadas; mesmo quando erguem braços e mãos para cima ainda resta um peso, como se seus centros tivessem sempre ligados à terra. Gosto da investigação dos gestos judaicos e de um ou outro duo que se desenvolve. Quando a frase engraçadinha aparece – “Where there is pressure... there is folk dance” – os celulares disparam e há um flood no instagram, e então alguma coisa mais concreta se delineia no meio das impressões: é tão bobo. A música à la Disney encerra com o rewind do haraquiri que abrira, constrangedoramente, a peça, sob o letreiro projetado com o título da coisa: Political mother. “Deus queira que não haja um Political father”, disse o Reis. Concordei, ainda que não tenha sentido a metade da fúria que ele provou aquele dia. “A luz era foda”, ponderou o Marcelo. É, a luz era foda.

Peeping Tom (dia 3)

A companhia belga faz cinema no palco e eu, enrolada numa pashmina que é quase uma manta, procuro posição na diminuta cadeira para dormir: quando os primeiros personagens adentram o belíssimo cenário (neve, poste, trailers) e uma das bailarinas (?) começa um número de contorções, entendo que aquilo não é para mim. Todo mundo ri e eu não vejo nada engraçado. Quando a dupla de asiáticos entra no palco e o burro de carga se desequilibra e cai com o peso da bagagem, se desequilibra e cai, se desequilibra e cai... todo mundo ri muito. A mim parece um reunião de pessoas mostrando o que sabem fazer. As pequenas narrativas existem para que essas aptidões tenham seu holofote. Tem gente feliz, que bom. À saída, concordo com a Carla, que diz: “Não é fácil querer ser Pina Bausch.” Um rapaz da produção comenta com um colega: “Isso foi uma das coisas mais lindas que já vi nesse palco. Isso e o Momix.” Uma conhecida para quem dou carona declara ter vivido uma noite mágica, como quando viu Donka. “É que eu não gosto de circo”, digo, e ficamos combinadas assim. No dia seguinte, no trabalho, a Rosana está preocupada com a minha alegria, nitidamente comprometida. Pensando bem, concluo, gosto dessa polaridade: é sinal de vida. Pior seria todo mundo ficar indiferente.

Mimulus e Maribor Ballet (dia 4)

As primeiras luzes de Mimulus se acendem com essa contabilidade desfavorável: ainda que goste do debate e das falas entreouvidas aqui e ali, gosto mais do êxtase que certas coisas provocam. Mais do que querer, esta noite eu preciso gostar, por uma questão de sobrevivência. O ar-condicionado atinge temperaturas intoleráveis e eu estou munida de 2 pashminas e fé, se não cega, muito míope. Não é preciso mais que 10 minutos para saber que os corredores, bem menos glaciais que o balcão, são a felicidade de que disponho por ora. Quando saio me esquivando entre as fileiras, percebo rumores de reclamação, gente bufando à minha passagem. Tenho certeza que bufavam pelo que acontecia a metros dali, sob as luzes nada fodas da companhia mineira. No intervalo, Reis e eu discutimos a nossa permanência no local. 

A segunda parte do programa da noite previa um Romeu e Julieta ao som de Radiohead, dançado por um balé esloveno. Ficamos. “Vamos sentar no corredor”, eu disse, “se quisermos sair no meio vai ser mais fácil”. Ele concordou. O trauma une as pessoas. Alguns minutos de expectativa, que aumentou à medida que o vídeo em PB projetado no palco se desenrolava. E de repente: “Fitter, happier, more productive...” Um ser de outro planeta sola, para assombro dos mortais. Classicamente deformada, enorme, naturalmente branca como as criaturas de Shen Wei. Nervosa, rígida, com gestos calculados e uma precisão desconcertante. Braços e pernas a perder de vista. Meu deus. O que podia ser um desastre prova-se um presente para nós. Fugindo a qualquer obviedade, as escolhas musicais formam uma trilha que parece ter sido inteiramente composta para a criação de Edward Clug. O frio da Eslováquia, representado tão bem pelo sistema de refrigeração do Theatro e presente nos gestos e movimentos daquele corpo de baile, é uma porrada. E ainda que o espetáculo de Clung tenha lá seus percalços, não havia outro destino para nós aquela noite: bênção. Choramos, amamos e chafurdamos em chocolate quente até de madrugada, sem nem querer conversar muito para não atrapalhar os rastros que ficaram na nossa carne.

Quasar e Grupo de rua (dia 5 e último)

Foi no teatro da UERJ onde vi o Quasar pela primeira vez, num tempo remoto pré-dadaísta. De lá pra cá, os balés de Henrique Rodovalho foram flertando cada vez mais com o nonsense e o aleatório, a ponto de todo mundo sair de sua plateia desnorteado, sem entender, sem decifrar, sem saber porque um amigo não o aconselhou a abandonar um ou outro trecho. O Quasar na UERJ era uma dança que falava de solidão. Um cenário que retratava dois apartamentos vizinhos tinha uma parede que os separava e que era derrubada ao final. Um dos moradores passava uma parte da performance num conversa telefônica à la disk-amizade não fictícia. O vizinho pedia uma pizza que, minutos depois, era entregue por um motoqueiro que adentrava o palco sem ter muita certeza do que estava fazendo. Rodovalho não abandonou o humor. Ao contrário: se apropriou dele com tal vigor que o público gargalha e aplaude com vontade. Outro Quasar que vi: um solo que Daniel Calvet dançou no SESC e que era inacreditável de tão bom e do que o menino, magrinho, conseguia fazer. Ele era a perfeita incorporação do estilo do coreógrafo: aquela desconjunção pontuada por chicotadas de cabeça e quebra de articulações e dobras. Mas meu queixo caiu mesmo com Só tinha de ser com você, uma dança que se fazia ao som de Elis & Tom, disco dos anos 1970. O que se passava ali era dança pura, como na Sagração de Shen Wei (ele ficou, não tem jeito): bailarinos dançavam, e era lindo e suficiente. Sinto saudade desse Quasar. 

O deste festival tem seus momentos: os duos de “Recanto” são belos e pautados por uma luta gingada, referência constante nas dinâmicas do goiano à frente da trupe. Algumas piadas me embarcam e está lá o Calvet, desta vez um pouco eclipsado pela presença de um bailarino que rouba os brilhos. Gosto da Valeska, bailarina que criou raízes na companhia e tem uma postura entre a empáfia e a ironia. Debochada, talvez. A trilha sonora pode ter Camille e Céu, entre outros. Uma piração que não junta lé com cré e que parece entreter os bailarinos e o público. Para fechar este No singular, um dos bailarinos anuncia que é chegada a hora que muitos haviam esperado, e de repente o palco se enche de espectadores que haviam ensaiado uma variação para dançar junto com o excelente elenco do Quasar. Um flashmob cheio de pompa. Luiza e eu nos olhamos sem acreditar que perderíamos essa. E lá estava: uma cabeçada executava a sequência que, em vídeo postado no YouTube, Calvet e Rodovalho tinham ensinado. Apoteose de quem subiu. Que inveja...

A Dança de Rua de Bruno Beltrão, reconhecida internacionalmente, abriu as entranhas do palco do Municipal, deixando à mostra coxias (agora extintas) e a parafernália que sempre se escondem. Surpreendente, a companhia é formada por uma mulher e diversos homens. Ousada (agora sim) pacas, a movimentação é aeróbica, parece luta e as corridas em rewind são vertiginosas (e irônicas pra quem já correu – muito, em círculos e para frente – em aulas de dança contemporânea), pontuadas pelos ruídos dos tênis no piso, uma sinfonia incômoda, a buzina do (prolongamento do) corpo. A rua está ali, numa dinâmica de encontros e perfume de gangues, por vezes fazendo alusão a um MMA. A luz de Bruno Beltrão também é foda, e não demora até sua porção Nijinski vir à tona: debandada da plateia. Salvas as devidas proporções, o coreógrafo fluminense desperta reações como as que a Sagração de 1913 causou. Apesar da singularidade da coisa e do trabalho consistente, estou entre aqueles que desistem da performance antes do seu fim. Acho chato. Parece incongruente, mas acontece mais do que eu queria: acho ótimo, mas acho chato.

Desdobramentos (dia 6 e subsequentes)

As coisas funcionam quando continuam, e este mérito não se pode negar a aventuras como um festival de dança. Sobreviventes das tosses que furam os silêncios, reféns dos casacos ainda com cheiro de armário e espectadores acidentais de barracos em balcões — nobres ou não — somos corpos com mais possibilidades de afetos. A ampliação do calendário de dança e os fundos de apoio que acenam são luzes para nós que já fomos fisgados, e uma isca para novas plateias. Queremos gostar e queremos descobrir beleza, mesmo quando ela não é óbvia. Ao menos, eu quero. A julgar pelos vídeos e reportagens que agora inundam a caixa de mensagens, e todos com anexos de uma respiração descompassada, diria: missão cumprida. Reis e eu já planejamos montar um balé ao som de AMOK

Agora é encontrar calmante até que a Sagração da Pina abra o Panorama, no fim do ano. E antes: mel com limão. 



Um comentário:

Paula Raja disse...

Julieta,

Mais uma vez passo por aqui e fico feliz por ter visitado sua página.

Obrigada por me fazer ir buscar o que é AMOK :)

Beijos,

Paula