(Para Clara M.)
1) No
primeiro dia do ano de 2006 eu acordei sobre um braço que não era meu. Catei no
chão o vestido, verdadeiro obstáculo da noite anterior, e fui até o banheiro
tateando um corredor que eu não conhecia. Lavei o rosto e usei uma escova de
dentes de alguém que eu também não conhecia e joguei as lentes descartáveis no
cesto do lixo. Voltei pro quarto, outra vez me livrei do vestido, escorreguei
para debaixo do edredom. Quando fechei os olhos, vermelhos e sensíveis por
causa das lentes ressecadas, quando senti o alívio por fechar os olhos, e
quando, respirando devagar e mexendo levemente os pés, como sempre faço pra
embalar no sono, quando aquela certeza de dormir loucamente, sem hora, feriado
mundial: dois braços que não eram meus, o rosto barbado, encontro de línguas,
primeiro passo pro infinito.
2) Li Ciranda de pedra e sublinhei, entre
outros, este trecho: “Ouça, Virginia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem
pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem
pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância
mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos
que se encontram as melhores coisas.” Li, também, todo o Caio, sem nem poder
desconfiar de tudo o que essas leituras me causariam, e girfei, na página 168
da antologia que cobre a década de 1980: “Atravessarás o dia fazendo coisas
como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse
nada mais importante a fazer.”
3) Num
caderno de capa dura (rosa) e folhas sem pauta (brancas) colei um silk de
estrela prateada de uma camiseta que ficou velha, sendo que duas de suas pontas
cobriam um pedacinho de um autógrafo do Marcelo Camelo que eu conseguira no ano
anterior, numa garagem de Ipanema. Na contracapa do mesmo caderno escrevi, de
caneta brilhante, um poema de Rimbaud. Das 150 páginas, 3 foram usadas para
transcrever passagens dos diários do Kurt Cobain; 5 foram ocupadas com fotos de
pessoas que estavam in voga naqueles
tempos; 9 foram usadas para colar uma correspondência por email com um sujeito
que me daria um pé na bunda em Paris no outono; metade delas poderia ter
molhado de tanto que chorei por causa das separações que enfrentei e quase
todas continham pelo menos uma ocorrência do nome dele (que ainda não tinha
entrado na história e quando chegou, ai meu deus).
4)
Clonaram meu Orkut.
5) Num
outro dia em janeiro sentei-me numa cadeira Tenreiro procurando permanecer imóvel.
À minha frente um artista plástico que eu admirava muito me desenhava. Eu nem
sei se precisava ser tão econômica nos gestos, mas me parecia uma possibilidade
coerente. Ele me traçava a carvão e eu sentia um batuque brando no peito, e
esse estado presente era o que me dava a nítida sensação de que, na verdade, eu
estava dançando, porque eu tinha esse ritmo, e portanto era impossível ficar
imóvel. Poucos minutos depois, ao olhar para o desenho pronto, aquele
desconforto de ficar olhando para si, e certo deslumbramento de, ao mesmo tempo, se reconhecer e ser estrangeiro, a desconfiança de que alguém tivesse me
investigado, bem mais que F. naquele réveillon, bem mais que os livros que me atravessaram, bem mais que roubo de senha: eu a carvão era uma possibilidade, mas tão real, como
quando o mundo vai se apequenando e você vai vendo as casas de cima, os
telhados e os buracos das chaminés, como quando o balão levanta voo e você vê tudo igual, mas de outro jeito, se embrenhando em azul, desviando de nuvens.
2 comentários:
Quando você escreve, essa arte parece tão fácil...
Quando você escreve, essa arte parece tão fácil...
Postar um comentário