- Eu não sei bem como é que foi, sei que
estávamos falando sobre índios, Oswald, a carta de Caminha e essas coisas. E de
repente estava lá: Deleuze e o surfe.
- Mas tinha haxixe nessa aula?!
- Se tinha, não me deram.
- Desenvolva.
- Não saberia nem entender o devir, que dirá te
explicar o que ele tem a ver com o surfe. Mas de alguma forma, no fim das
contas, achei que fazia algum sentido.
- Deleuze e surfe? Cê foi atravessada
por muito sol, é a única tese possível.
- Debochada.
- É um talento.
- Não é que o cara tenha defendido uma
dissertação sobre Deleuze e o surfe. Mas ele comentou. A gente tava falando de
rio, superfície, desdobramento. E fortuna crítica. A Susan Sontag entrou no
barco também. E o Barthes.
- É um amor pelo Barthes, né?
- Muito. Podia ter uma estátua do Barthes na
entrada da PUC.
- Mas voltando.
- Saí da aula cantando “Como uma onda”.
- Deleuze, surfe e Lulu Santos? Devir-insanidade,
é o que tá parecendo essa conversa.
- É o seguinte: existe um rio, existe um
sujeito. O sujeito entra no rio. Quando entrar no rio de novo, o sujeito já não
será o mesmo, nem o rio. É o que diz o Deleuze. E o Barthes. E a Sontag. E acho
que o Foucault também.
- E o Lulu Santos.
- Exato. Você tem que estar aberto pra entrar no
rio e perceber outras coisas, fazer uma nova leitura dele.
- Até aí tudo bem: despertar outros
afetos.
- E perceptos.
- E subjetividade.
- O devir mora por aí. Você sofre um apagamento
diante da obra de arte. O devir é o que escapa dessa nova subjetividade. Ou
não?
- Talvez.
- Talvez. Mas quando isso se torna consciente,
você já voltou pro seu estado de conformação. Já não está mais atravessado
pelas forças. É um instante de suspensão. Quando vê, já passou.
- Então o devir é o quase?
- Entendi que sim.
- É meio lindo isso, né?
- Muito.
- Dízima periódica.
- Como?
- O devir é uma dízima periódica: quase
lá, inacabado. Angustiante.
- Muito angustiante.
- E o surfe, onde entra?
- Justamente: quando você se dispõe a entrar no
rio, quando você se permite ler outra vez, aberto para os novos afetos, você
tem que deixar de lado as referências.
- O que me parece complicado.
- A mim também. Em vez de ler armado, você tem
que entrar na onda, saca?
- Surfista.
- Bingo.
- Nada
do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Mas é tão fácil assim?
- Não é nada fácil. A gente ta inventando uma
hipótese.
- Não-ortodoxa.
- Apaziguadora, em certo sentido. Esse
inacabamento e essa desconfiança de tudo é o que me deixa perdida.
Academicamente falando.
- Sei como é. Há um excesso de
escavação, né?
- Ô.
- Quando eu penso nessas coisas dá
saudade da praia quando criança, e dos buracos que certamente dariam no Japão.
A escavação tinha um Norte tão firme.
- Tem outra coisa também: o Deleuze não
aprofunda.
- Como assim?
- Ele acha que tudo tá na superfície. E que
dali, da dobra, as coisas se desdobram.
- A mim parece profundo pacas.
- Totalmente. Abstrato demais. Filosofia pura.
- Que nem a música do Lulu, né?
- Super.
- Será que é deboche nosso?
- E se for, tudo bem?
- Tudo bem.
2 comentários:
Quem escreveu primeiro isso sobre o sujeito e o rio foi Heráclito de Éfeso...
Joana
já não sou eu.
já não é você.
porque tudo passa o tempo todo no mundo, já não somos nós.
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