quarta-feira, maio 29, 2013

Terça e quinta

- Eu não sei bem como é que foi, sei que estávamos falando sobre índios, Oswald, a carta de Caminha e essas coisas. E de repente estava lá: Deleuze e o surfe.
- Mas tinha haxixe nessa aula?!
- Se tinha, não me deram.
- Desenvolva.
- Não saberia nem entender o devir, que dirá te explicar o que ele tem a ver com o surfe. Mas de alguma forma, no fim das contas, achei que fazia algum sentido.
- Deleuze e surfe? Cê foi atravessada por muito sol, é a única tese possível.
- Debochada.
- É um talento.
- Não é que o cara tenha defendido uma dissertação sobre Deleuze e o surfe. Mas ele comentou. A gente tava falando de rio, superfície, desdobramento. E fortuna crítica. A Susan Sontag entrou no barco também. E o Barthes.
- É um amor pelo Barthes, né?
- Muito. Podia ter uma estátua do Barthes na entrada da PUC.
- Mas voltando.
- Saí da aula cantando “Como uma onda”.
- Deleuze, surfe e Lulu Santos? Devir-insanidade, é o que tá parecendo essa conversa.
- É o seguinte: existe um rio, existe um sujeito. O sujeito entra no rio. Quando entrar no rio de novo, o sujeito já não será o mesmo, nem o rio. É o que diz o Deleuze. E o Barthes. E a Sontag. E acho que o Foucault também.
- E o Lulu Santos.
- Exato. Você tem que estar aberto pra entrar no rio e perceber outras coisas, fazer uma nova leitura dele.
- Até aí tudo bem: despertar outros afetos.
- E perceptos.
- E subjetividade.
- O devir mora por aí. Você sofre um apagamento diante da obra de arte. O devir é o que escapa dessa nova subjetividade. Ou não?
- Talvez.
- Talvez. Mas quando isso se torna consciente, você já voltou pro seu estado de conformação. Já não está mais atravessado pelas forças. É um instante de suspensão. Quando vê, já passou.
- Então o devir é o quase?
- Entendi que sim.
- É meio lindo isso, né?
- Muito.
- Dízima periódica.
- Como?
- O devir é uma dízima periódica: quase lá, inacabado. Angustiante.
- Muito angustiante.
- E o surfe, onde entra?
- Justamente: quando você se dispõe a entrar no rio, quando você se permite ler outra vez, aberto para os novos afetos, você tem que deixar de lado as referências.
- O que me parece complicado.
- A mim também. Em vez de ler armado, você tem que entrar na onda, saca?
- Surfista.
- Bingo.
- Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Mas é tão fácil assim?
- Não é nada fácil. A gente ta inventando uma hipótese.
- Não-ortodoxa.
- Apaziguadora, em certo sentido. Esse inacabamento e essa desconfiança de tudo é o que me deixa perdida. Academicamente falando.
- Sei como é. Há um excesso de escavação, né?
- Ô.
- Quando eu penso nessas coisas dá saudade da praia quando criança, e dos buracos que certamente dariam no Japão. A escavação tinha um Norte tão firme.
- Tem outra coisa também: o Deleuze não aprofunda.
- Como assim?
- Ele acha que tudo tá na superfície. E que dali, da dobra, as coisas se desdobram.
- A mim parece profundo pacas.
- Totalmente. Abstrato demais. Filosofia pura.  
- Que nem a música do Lulu, né?
- Super.
- Será que é deboche nosso?
- E se for, tudo bem?
- Tudo bem.


2 comentários:

Anônimo disse...

Quem escreveu primeiro isso sobre o sujeito e o rio foi Heráclito de Éfeso...
Joana

Águas disse...

já não sou eu.
já não é você.
porque tudo passa o tempo todo no mundo, já não somos nós.