Tenho
boas lembranças de sofás: os da casa de Petrópolis da Manu, por exemplo,
abrigavam uma enorme quantidade de gente, o que os tornava sempre locação para
as fotos de grupo que fazíamos em cada fim de semana por lá. Era uma época em
que a vida era feita de fotos de grupo e você tinha sempre que tirar mais de
uma, caso alguém piscasse, mas menos de 4, porque não tinha tanto filme assim.
Os sofás da casa de Petrópolis tinham estampas de flor, tecidos adamascados e
almofadas com franjas e veludos. Eram calmos, cheirosos e davam uma certa
vontade de contemplação e de cochilo à tarde, e ainda assim éramos capazes de emendar dias inteiros em longas rodadas de Nintendo. Ali naquela casa tudo parecia
saído de uma revista de decoração, só que tudo era muito melhor, porque
existia.
Gostava,
também, do sofá de Penedo com seus braços robustos e que durante um tempo
tiveram a altura ideal para eu cochilar com a cabeça apoiada, quentinha da
lareira, dos meus pais ou dos cães que sempre habitaram aquela casa. Eu não
saberia falar sobre as cores e desenhos do sofá de Penedo sem recorrer às
fotos, e talvez ele nem fosse tão robusto e acolhedor assim, mas algumas
memórias de infância ficam nubladas e as coisas adquirem
um tamanho bem maior, como se nossas pernas ficassem sempre a balançar, mesmo
que você já tivesse 1m55 de altura.
Nos
sofás da casa da Marcelle, tantas coisas: se falassem, ai de todos nós que
dormimos neles antes, durante e/ou depois de festas, acordando amassados,
cheios de bafo e ressaca antes que os pais dela voltassem para casa, e antes,
portanto, das broncas que eventualmente levávamos. Eram incansáveis, aqueles
sofás, e resistentes a todas as nossas tentativas inconscientes de
destruição.
E
o sofá da Joatinga: lembro de ter dedicado um texto a ele num extinto blog. A
sala da Clara, por ser a primeira de nós a morar sem os pais, foi uma espécie
de confessionário, ponto de encontro que testemunhou a costura resistente de
amizades que até hoje nos fazem correr pra ele – nos extremos alegres e
tristes, ou mesmo por razões corriqueiras e medianas – ainda que agora habite
outro bairro e seja, de fato, outro sofá, mas igualmente convidativo. Poço de
afetos, o sofá da Clara, ou melhor, a dinastia de sofás da Clara, tem a medida
certa de cada um que senta ali, como se fosse capaz de se refazer em mil
densidades de espuma ou ângulos para acolher o visitante da melhor maneira
possível. Deve ser genético.
Eis
que chegou a minha vez de ter o meu very own sofá, e boa parte dos
amigos foi taxativa: você TEM QUE IR no Fernando Jaeger. Eu era favorável ao
Fernando Jaeger, visto que passara boa parte do mês anterior jogada em cima de
um exemplar dele. Mas, como dizem, rapadura é doce, mas não é mole não – e a
máxima se aplica a esse objeto fundamental da casa, e depois de testar sofás
pelo Rio de Janeiro concluo que aquele que eu andava frequentando só pode ser
um acidente de percurso.
Explico:
houve um fato anterior aos testes, e que acabou definindo os resultados, além
de redirecionar toda a pesquisa: fiz sexo num sofá. Foi sem querer. Quer
dizer: foi inesperado, querência não faltou. Em um momento eu estava sentada
comportadamente num sofá (aparentemente sem grife ou época identificáveis),
conversando com o dono do sofá (aparentemente tão bem comportado quanto eu), e
no outro eu estava, bem, fazendo outras coisas com o dono do sofá. No sofá. E
depois, bem, adormecemos no sofá, porque parecia impossível deixar o sofá
aquela noite.
O
caso é que no dia seguinte, já distante do sofá em questão, eu fui ao Fernando
Jaeger. E o pior: a Maíra foi lá antes de mim. A Maíra é a melhor e a pior
companhia para ir com você fazer compras de itens para uma casa. Melhor porque
ela fica igualmente animada no Fernando Jaeger e na Leroy Merlin: ela vê
potencial tanto em uma quanto em outra loja. Pior porque ela nasceu punk e acha
que tudo é passível (e possível) de ser feito com as próprias mãos (dela).
Portanto você pode passar uma tarde com a Maíra, entrar em 15 estabelecimentos
comerciais, não comprar nada e fazer planos de construir uma mesa, uma escrivaninha, 4 cadeiras e 2 luminárias. Nem as tomadas ela deixa você levar, e não
porque ela queira fazer, mas porque no Saara (ela é uma wikiSaara) tem e custam
metade do preço.
Pois
bem: Maíra foi ao Fernando Jaeger e quando eu cheguei lá sentei em meia dúzia
de sofás, duvidei da qualidade das mesas, achei que as cadeiras todas pareciam
meio frágeis e telefonei pra ela pra desabafar minha decepção. Gongamos todos
os móveis: não era possível que sofás fossem feitos de uma espuma dura, de
grampos rocama (Passa a mão embaixo deles e você vai sentir!, ela exclamava,
revoltada) e de um espaço tão estreito que nem dava muito pra querer ficar com
sono, e não era possível que as mesas todas parecessem um grande compensado
coberto com uma folha de alguma coisa ou que aquelas mesinhas de canto onde nem caberia um livro da L&PM custassem o preço que custavam. Mas mais grave ainda era que vários
amigos e conhecidos estivessem sustentando sofás em que ninguém ia conseguir
trepar com ninguém. E não há chance de alguém dormir no meio de um filme chato
num sofá do Fernando Jaeger e, tragédia máxima: não vai ter conchinha num sofá do Fernando Jaeger.
Parte
do tempo que habitei aquele sofá do Fernando Jaeger que agora me parece um
acidente (visto que é espaçoso, confortável e propício a sexos e conchinhas) eu
estava às voltas com um livro de crítica literária que, na impossibilidade de
classificar certas obras, acabava instaurando uma nova categoria para elas: a
do inespecífico. Quando desliguei o telefone com Maíra eu experimentava
exatamente essa ideia: aquele sofá era um híbrido, um registro
indeterminado, um território instável que já não se podia afirmar tratar-se de
um sofá ou de um banco – duro, desconfortável, repelente. E ao mesmo tempo todo
aquele linho, aquelas cores, aquela forma. Meu único alento era saber que a
Maíra estava no meu time e que tinha observações ainda mais certeiras que as
minhas: era capaz de eleger sofás para surubas, ménages e quaisquer outras
configurações sexuais sobre as quais eu nem pensava.
Naquela
tarde seguinte à ida ao Fernando Jaeger eu tratei de difamá-lo entre os amigos
que haviam sido tão enfáticos e comprei um sofá numa loja caretíssima e tradicional; de molas, cheio de costuras e com espaço: para simular uma tarde doente em
casa, faltar o trabalho e dormir loucamente com a tv no mudo; convidar para a
minha casa o dono daquele sofá, responsável direto por eu ter gastado quase um
tanque de gasolina à procura de um sofá onde pudéssemos, quem sabe, com um
pouco de sorte e surpresa, reencenar aquela noite.
A
Maíra não estava comigo quando comprei o sofá, é claro, afinal ela não teria
deixado. O meu sofá, eu acho, reúne um pouco do que aqueles sofás citados aqui
tinham: um magnetismo, um sim a postos, um carinho na nuca quando você chega
tarde do trabalho, um quentinho na medida para o inverno rigoroso do Horto.
Sobretudo, ao contrário da melhor literatura contemporânea que te deixa invariavelmente desconfortável, o meu sofá é canônico, e logo nele a conchinha tem vez, afinal disso não abro mão: existe amor
na minha sala.