Estragon: Teria passado igual.
Vladimir: É. Mas menos depressa.
Samuel Beckett, Esperando Godot
É uma coincidência que Stephanny (e estou
chutando a grafia) tenha me atendido outra vez naquele dia, ou são os astros, pensei, mas a ligação caiu
quando – na porta de uma loja concorrente, em frente a um trocaço de figurinhas
da Copa que mais parecia um flashmob na saída do metrô Uruguaiana – eu estava
prestes a comprar uma geladeira e um fogão. Quando você telefona para uma das
lojas da Fast Shop e nenhum vendedor responde, a ligação é direcionada para o televendas
e lá estará Stephanny. Todavia, ao ouvir o tu tu tu do fim da linha, rumei para
o metrô, venci a turba de adultos infantilizados e almocei uma empada no
caminho de volta para a firma.
Postada em frente ao computador para
conferir pela décima vez os modelos da geladeira e do fogão, Stephanny ressurge
dizendo “olá, senhora Julia” antes mesmo de eu me apresentar. “Me dê logo um
telefone de contato caso a ligação seja cortada de novo”, e a partir de então o
caos se instala na minha cabeça: por mais que Stephanny e eu apertássemos os
botões de refresh de nossas máquinas, o fogão dela tinha um preço, o meu tinha
outro, embora fossem os mesmos. Era uma diferença de alguns reais, mas naquele
momento, parecia, Stephanny habitava uma realidade à qual eu não tinha acesso,
e vice-versa, e isso me perturbou muito. Ela, entretanto, parecia tranquila em
sua bolha impenetrável, e me ofereceu um desconto. Desisti da compra quando ela
passou o preço do frete: “Na loja não tinha preço de frete, Stephanny”. “Mas na
loja não tinha o seu fogão, senhora Julia”, ela diria, se soubesse, e era
estranho mesmo que por telefone o fogão existisse, mas por encontro analógico
não. Desisti de Stephanny, apesar de sua boa vontade, porque àquela altura eu
já duvidava de toda a logística do estabelecimento comercial em questão, pois
paralelamente chegava no meu celular uma mensagem da minha mãe dizendo que a
máquina de lavar, prometida para ser entregue entre 15 e 16h, não tinha
aparecido e não apareceria mais.
Fui pela segunda vez à Fast Shop. Treinei
o meu melhor “escuta aqui”, mas no curto intervalo da mensagem da minha mãe e
de encerrar o dia editorial esbarrei num discurso de formatura que George Saunders escreveu (para uma turma sabe-se lá de onde) sobre ser gentil – uma variação bem menos empolgante
do Wear sunscreen. E amoleci.
Contei pro vendedor da loja que meu pai
tivera um piripaque três dias antes, e que se a máquina de lavar não fosse
re-entregue no horário certo quem ia ter um treco era eu. Não que ele se
importasse, mas a perspectiva da compra de mais 2 eletrodomésticos abriu a
cabeça de Luiz Henrique: ele verificou no “sistema” que a (não) entrega da
máquina tinha sido feita naquele mesmo dia, às 11 da manhã, horário em que,
claro, não havia ninguém em casa, visto que. Luiz Henrique desculpou-se potes, disse que isso não voltaria a acontecer e eu, bem: acreditei.
Então uma nova batalha teve início: os
preços da geladeira e do fogão do Luiz Henrique eram diferentes dos preços da
geladeira e do fogão de Stephanny, que eram diferentes dos preços do site que
eu via, que também não batiam com os preços do site que o Luiz Henrique
consultava, e tudo pareceu tão complexo quanto entender quem é quem na família
Buendía. Life is like a box of chocolate, afinal, e o “sistema” é,
possivelmente, o mal do século.
Voltei pra casa, e porque era o único que tinha em casa - e andava bastante ocioso - acendi uma vela para um
Santo Antonio quebrado e lembrei de uma conversa que tive com Tiago
há pouco tempo. Falávamos sobre nossos
planos de aposentadoria: ler todo o Proust, ler toda a comédia humana do
Balzac, ler todo o Machado de Assis (o original, não esse novo facilitado), ler
todos os livros que compramos nas promoções da Cosac Naify ano passado e tentar
ficar em dia com toda a música que foi composta depois dos Strokes. Se a
produção cultural mundial parasse por uns anos, pensem só, a gente conseguiria
absorver uma parcela ínfima do que tem sido feito e livros nunca antes resenhados
teriam suas chances nos cadernos de literatura, e músicas nunca antes escutadas
teriam suas chances nas pistas de dança, e os últimos 10 anos não pareceriam tão
estrangeiros, além de que a virada do século XIX para o XX poderia ser
finalmente apreciada com a devida atenção. Tiago planeja, também, jogar dominó
na praça. Eu não tenho tanta ambição: o que eu queria mesmo era conseguir
um fogão. Não na velhice, agora.
Então me ocorreu que as esperas inúteis
são como um teaser da aposentadoria. As coisas nunca chegam, cabe a nós
enxergar o maravilhoso disso: a máquina de lavar é o meu Godot, e ele é
rizomático: se multiplica pela geladeira, pelo fogão, pelo sofá, pela estante e
por tudo o mais que uma casa precisa ter para se configurar como tal – e que nunca
terá. Livros são textos que nunca se acabam de escrever, lares são
configurações que nunca se erguem completamente. Já penso em esperar coisas
pelos meus amigos. Há uma nova profissão a ser inventada, e tudo de que
precisamos é uma boa poltrona: carpe diem, boys. Seize the day.
Um comentário:
Esse momento, que deveria ser de alegria (montar a casa), pelo péssimo modus operandi dessas lojas, é um calvário!
essa maluquice com os preços é só pra fazer o consumidor, este otário sempre, se confundir e pagar mais caro.
o que eu fiz e recomendo: usa o zoom.com.br ou o bondfaro.com.br para ver o menor preço do que você quiser, imprime os menores preços e pede pro vendedor da loja fazer melhor que você compra com ele (ele vive de comissão). não funciona sempre, mas funciona bastante.
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