terça-feira, maio 27, 2014

Casas Bahia - vol. 2


Tenho boas lembranças de sofás: os da casa de Petrópolis da Manu, por exemplo, abrigavam uma enorme quantidade de gente, o que os tornava sempre locação para as fotos de grupo que fazíamos em cada fim de semana por lá. Era uma época em que a vida era feita de fotos de grupo e você tinha sempre que tirar mais de uma, caso alguém piscasse, mas menos de 4, porque não tinha tanto filme assim. Os sofás da casa de Petrópolis tinham estampas de flor, tecidos adamascados e almofadas com franjas e veludos. Eram calmos, cheirosos e davam uma certa vontade de contemplação e de cochilo à tarde, e ainda assim éramos capazes de emendar dias inteiros em longas rodadas de Nintendo. Ali naquela casa tudo parecia saído de uma revista de decoração, só que tudo era muito melhor, porque existia.

Gostava, também, do sofá de Penedo com seus braços robustos e que durante um tempo tiveram a altura ideal para eu cochilar com a cabeça apoiada, quentinha da lareira, dos meus pais ou dos cães que sempre habitaram aquela casa. Eu não saberia falar sobre as cores e desenhos do sofá de Penedo sem recorrer às fotos, e talvez ele nem fosse tão robusto e acolhedor assim, mas algumas memórias de infância ficam nubladas e as coisas adquirem um tamanho bem maior, como se nossas pernas ficassem sempre a balançar, mesmo que você já tivesse 1m55 de altura. 

Nos sofás da casa da Marcelle, tantas coisas: se falassem, ai de todos nós que dormimos neles antes, durante e/ou depois de festas, acordando amassados, cheios de bafo e ressaca antes que os pais dela voltassem para casa, e antes, portanto, das broncas que eventualmente levávamos. Eram incansáveis, aqueles sofás, e resistentes a todas as nossas tentativas inconscientes de destruição. 

E o sofá da Joatinga: lembro de ter dedicado um texto a ele num extinto blog. A sala da Clara, por ser a primeira de nós a morar sem os pais, foi uma espécie de confessionário, ponto de encontro que testemunhou a costura resistente de amizades que até hoje nos fazem correr pra ele – nos extremos alegres e tristes, ou mesmo por razões corriqueiras e medianas – ainda que agora habite outro bairro e seja, de fato, outro sofá, mas igualmente convidativo. Poço de afetos, o sofá da Clara, ou melhor, a dinastia de sofás da Clara, tem a medida certa de cada um que senta ali, como se fosse capaz de se refazer em mil densidades de espuma ou ângulos para acolher o visitante da melhor maneira possível. Deve ser genético.

Eis que chegou a minha vez de ter o meu very own sofá, e boa parte dos amigos foi taxativa: você TEM QUE IR no Fernando Jaeger. Eu era favorável ao Fernando Jaeger, visto que passara boa parte do mês anterior jogada em cima de um exemplar dele. Mas, como dizem, rapadura é doce, mas não é mole não – e a máxima se aplica a esse objeto fundamental da casa, e depois de testar sofás pelo Rio de Janeiro concluo que aquele que eu andava frequentando só pode ser um acidente de percurso. 

Explico: houve um fato anterior aos testes, e que acabou definindo os resultados, além de redirecionar toda a pesquisa: fiz sexo num sofá. Foi sem querer. Quer dizer: foi inesperado, querência não faltou. Em um momento eu estava sentada comportadamente num sofá (aparentemente sem grife ou época identificáveis), conversando com o dono do sofá (aparentemente tão bem comportado quanto eu), e no outro eu estava, bem, fazendo outras coisas com o dono do sofá. No sofá. E depois, bem, adormecemos no sofá, porque parecia impossível deixar o sofá aquela noite. 

O caso é que no dia seguinte, já distante do sofá em questão, eu fui ao Fernando Jaeger. E o pior: a Maíra foi lá antes de mim. A Maíra é a melhor e a pior companhia para ir com você fazer compras de itens para uma casa. Melhor porque ela fica igualmente animada no Fernando Jaeger e na Leroy Merlin: ela vê potencial tanto em uma quanto em outra loja. Pior porque ela nasceu punk e acha que tudo é passível (e possível) de ser feito com as próprias mãos (dela). Portanto você pode passar uma tarde com a Maíra, entrar em 15 estabelecimentos comerciais, não comprar nada e fazer planos de construir uma mesa, uma escrivaninha, 4 cadeiras e 2 luminárias. Nem as tomadas ela deixa você levar, e não porque ela queira fazer, mas porque no Saara (ela é uma wikiSaara) tem e custam metade do preço. 

Pois bem: Maíra foi ao Fernando Jaeger e quando eu cheguei lá sentei em meia dúzia de sofás, duvidei da qualidade das mesas, achei que as cadeiras todas pareciam meio frágeis e telefonei pra ela pra desabafar minha decepção. Gongamos todos os móveis: não era possível que sofás fossem feitos de uma espuma dura, de grampos rocama (Passa a mão embaixo deles e você vai sentir!, ela exclamava, revoltada) e de um espaço tão estreito que nem dava muito pra querer ficar com sono, e não era possível que as mesas todas parecessem um grande compensado coberto com uma folha de alguma coisa ou que aquelas mesinhas de canto onde nem caberia um livro da L&PM custassem o preço que custavam. Mas mais grave ainda era que vários amigos e conhecidos estivessem sustentando sofás em que ninguém ia conseguir trepar com ninguém. E não há chance de alguém dormir no meio de um filme chato num sofá do Fernando Jaeger e, tragédia máxima: não vai ter conchinha num sofá do Fernando Jaeger

Parte do tempo que habitei aquele sofá do Fernando Jaeger que agora me parece um acidente (visto que é espaçoso, confortável e propício a sexos e conchinhas) eu estava às voltas com um livro de crítica literária que, na impossibilidade de classificar certas obras, acabava instaurando uma nova categoria para elas: a do inespecífico. Quando desliguei o telefone com Maíra eu experimentava exatamente essa ideia: aquele sofá era um híbrido, um registro indeterminado, um território instável que já não se podia afirmar tratar-se de um sofá ou de um banco – duro, desconfortável, repelente. E ao mesmo tempo todo aquele linho, aquelas cores, aquela forma. Meu único alento era saber que a Maíra estava no meu time e que tinha observações ainda mais certeiras que as minhas: era capaz de eleger sofás para surubas, ménages e quaisquer outras configurações sexuais sobre as quais eu nem pensava. 

Naquela tarde seguinte à ida ao Fernando Jaeger eu tratei de difamá-lo entre os amigos que haviam sido tão enfáticos e comprei um sofá numa loja caretíssima e tradicional; de molas, cheio de costuras e com espaço: para simular uma tarde doente em casa, faltar o trabalho e dormir loucamente com a tv no mudo; convidar para a minha casa o dono daquele sofá, responsável direto por eu ter gastado quase um tanque de gasolina à procura de um sofá onde pudéssemos, quem sabe, com um pouco de sorte e surpresa, reencenar aquela noite. 

A Maíra não estava comigo quando comprei o sofá, é claro, afinal ela não teria deixado. O meu sofá, eu acho, reúne um pouco do que aqueles sofás citados aqui tinham: um magnetismo, um sim a postos, um carinho na nuca quando você chega tarde do trabalho, um quentinho na medida para o inverno rigoroso do Horto. Sobretudo, ao contrário da melhor literatura contemporânea que te deixa invariavelmente desconfortável, o meu sofá é canônico, e logo nele a conchinha tem vez, afinal disso não abro mão: existe amor na minha sala.


Um comentário:

verso torto disse...

sensacional! ri indiscriminadamente no trabalho.