quinta-feira, janeiro 12, 2012

Lanterna dos afogados - capítulo V


Well we all need someone we can dream on, and if you want it, baby, well you can dream on me. - Rolling Stones in Let it bleed.  



Minha incursão pelo mundo das piscinas teve fases bem distintas e definidas. Em comum, todas serviram de pretexto para abandonar a atividade. Estranhamente, segui adiante, com o mantra de se cheguei até aqui, só mais um pouco não vai doer. Quando ultrapassei a marca dos 1600 metros, confesso, achei que nem as inflamações escapulares (cada vez mais freqüentes) poderiam me parar. Virei uma máquina. Mais que todos os benefícios que a natação proporciona, mais que o impacto do livro do Haruki Murakami sobre corrida (eu sei, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, mas no fim dá no mesmo), o que me incentivou a continuar desbravando raias foi o Zé.

Até a minha amizade com o Zé começar, eu enfrentei: a) o pânico de morrer afogada; b) o pânico de ter um treco; c) o Paulão, ou Carlão?; d) a saudade doída do ballet.

Por partes:

a)     O ritual matinal nos primeiros 3 meses da natação consistia em dar um beijo na minha mãe ainda adormecida, afagar o cão idem e dar uma última olhada na cozinha de casa. Mentalmente me despedir de tudo, saber que aqueles gestos de carinho seriam minhas derradeiras delicadezas para com o mundo, porque depois de uma série de crawl, certamente morreria afogada. E eu sabia que era quase impossível tal façanha, visto que era só ficar de pé na piscina pra evitar tal tragédia, e mesmo que não conseguisse, havia ainda cerca de 3 ou 4 professores a postos que não hesitariam em mergulhar pra me salvar, provendo os mecanismos necessários para me ressuscitar. Nada, porém, me convencia, e meu epitáfio era certo: tal qual Ofélia, afogou-se.

b)     Quando entendi que não iria me afogar, achei, então, que pararia de nadar porque teria um treco. O desespero da falta de ar me faria, numa manhã chuvosa, interromper bruscamente uma braçada de costas, caminhar até a margem oposta, subir pela escada, buscar meus pertences e entrar no elevador ainda pingando, sem olhar pra trás, alheia às súplicas da Lili, ou de quem quer que fosse, de voltar pra água. Nunca aconteceu: numa raia de 3, fazer isso atrapalharia o ritmo do nado dos outros 2 atletas, e pra essas coisas sou solidária, portanto não tive um treco por excesso de compaixão e falta de espaço.


c)      O Paulão. Até hoje eu não sei se ele se chama Paulão ou Carlão, mas tanto faz porque Paulões e Carlões são, conceitualmente, a mesma pessoa. Ando destreinada para reconhecer flertes, mas quando o sujeito puxa assunto no elevador e te dá umas sacadas, é batata. No começo achei que era impossível alguém curtir alguém que tinha,  antes: marca do travesseiro no rosto, cabelos desgovernados, calça de pijama por cima do maiô; durante: maiô, touca, óculos, pé-de-pato; depois: marca de touca na testa, toalha amarrada na cintura, cabelos amassados, bochechas rosas. Mas cada olhada do Paulão (ou Carlão) em minha direção falava sobre coisas que eu nem sei dizer. Em vez de ficar lisonjeada ou orgulhosa do meu poder de sedução atroz, achei que a existência do Carlão (ou Paulão) na raia ao lado era motivo o suficiente pra abandonar tudo aquilo, porque aquele pretendente era demais até pra quem tem uma casa afetiva como a minha. 

d)     Em dezembro, também, eu fui assistir a uma apresentação de dança contemporânea e lembrei de como era ridiculamente feliz no ambiente bem menos molhado de uma sala de aula de dança, e toda vez que eu nadava e que tudo era igual e nunca outra coisa, eu pensava puta que pariu, o que eu to fazendo aqui? Drama bem fácil de entender.

Comecei a perceber que o que me mantinha ali chafurdada nas águas cloradas daquela escola de natação era o Zé.

O Zé divide raia comigo nas aulas de quarta-feira. O que eu sei do Zé: ele tem uma neta Julia de seis meses e um outro neto mais velho. Ele costumava dirigir até Campinas, completando o percurso em cerca de 5 horas. Ele gosta de vinhos. Ele tem voz de Nelson Gonçalves e sempre que o avisto entrando na piscina, cantarolo Chão deEstrelas mentalmente. O Zé, não sei por que, me dá vontade de chorar. Ele tem uns 80 anos, nada tranquilamente e ainda se preocupa se não vou bater com as unhas na parede da piscina, e se oferece pra tocar de lado comigo na raia. Eu mostro pra ele que mantenho as unhas curtas, e sinto vontade de chorar de novo.

Desde que eu descobri a doçura do Zé que chego mais cedo às quartas-feiras e faço alongamento com ele, a Elda e o Jimmy na piscina, antes de começarmos de fato a nadar. A Elda e o Jimmy também são mais velhos, não tanto quanto o Zé, mas ainda assim. A identificação com essa turminha é imediata e já penso em convidá-los pra um cineminha. Algo me diz que teremos muito assunto.

Hoje, às 7h01, fiquei presa no elevador do prédio da natação. Me veio todo esse flashback na cabeça, vi minha vida natatícia passar diante dos meus olhos. Por sorte, o Paulão não estava comigo. Tudo, sempre, poderia pior. Ficar presa no elevador do prédio da natação, ainda que por 3 minutos, foi como morrer afogada duas vezes na mesma quinta-feira, porque de repente, ao dar as primeiras braçadas do dia, tudo começou a doer (ombro, escápulas e pescoço), eu engoli água pacas e eu voltei à estaca zero. Quando consegui me libertar e chegar até a escada de acesso à piscina, não vi o Zé, porque não era o dia dele. Nem a Elda e nem o Jimmy estavam lá. Verdade seja dita, no estado em que me encontrava, até o Carlão poderia ter servido de alento, porque minhas pernas tremiam e eu só pensava em sair correndo, mas desde dezembro que esse ser está desaparecido.

O episódio dessa manhã anunciou que essa história de natação já foi longe demais. O Zé, posto que era chama, foi eterno enquanto durou. Já sinto saudades. Na hora do almoço vou comprar sapatilhas. Ballet é um massacre, mas é bem mais seguro.

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