sábado, dezembro 16, 2006

Esmalte

Foi na semana que fez aquele dia quente de doer, pés inchados e eu ia sentindo a roupa toda grudando e a testa oleosa, cabeça no tanque e deu meio-dia quando ela ligou. Ela sempre ligava essa hora, acordando, perguntando do vestido. Eu descrevia um pouco a peça, e sempre ocultava um detalhe para que houvesse surpresa. Eu separava as rendas e arrumava as fitas de cetim enquanto que ela bocejava lá num outro bairro e ia como se arrastando até a xícara de café. Duas colheres de açúcar. Eu esquentava meu almoço e ela esquecida no sofá, xícara na mão, jornal espalhado em volta e a unha do pé sempre vermelha. Impecável, ela era, sempre com suas roupas bem cuidadas e os cabelos num penteado daqueles de revista. Eu enfiava os cachos pra debaixo de um lenço e comia correndo, com pressa e então ia cortar as sedas, comprar a linha certa e sentava na máquina, o tecido fininho ia escorregando devagar, sempre numa linha reta e muito calculada, eu começava a juntar os pedaços pro vestido que fazia pra ela. Ela preparava a banheira e jogava na água quente pequenos saches de lavanda, ficava horas compridas, olhos fechados e o barulhinho dos seus braços se movendo na água. Eu fervia água pra tingir sua seda, combinava pozinhos de cores diversas até conseguir o azul que ela gostava, um tom com uma pitada de turquesa, mas muito discreto e chique, como tudo o que eu costurava pra ela. Eu via a luz do dia cair e pregava as rendas no barrado, debaixo do abajour eu ia ia dando ponto por ponto, fazendo uma pequena trama de rendinhas muito estreitas. Eu experimentava a roupa na manequim, checava se não havia esquecido alfinetes espetados nas rendas e por fim amarrava a fita de cetim na cintura. Embrulhava o vestido em papel fino e o acomodava numa sacola. Eu deixava o embrulho pontualmente às 19:45 na casa dela, que vinha à porta em seu roupão estampado, sua pele muito clara contrastando com as flores pretas do tecido japonês e ela me oferecia um chá. Eu sentava na cozinha bebericando da caneca enquanto ela provava a roupa. Voltava com um cheque e um sorriso satisfeito, e toda semana era assim: eu era sua costureira há 8 anos e ela nunca se queixava dos vestidos, usava-os em suas festas e jantares, desfilava meus modelos pelos países por onde viajava e eu sempre imaginava que devia deixar um rastro de flores pelo caminho, sempre achei que de seus pés saíam pétalas e folhas perfumadas e que a cada passo dela podiam-se ouvir suspiros. Eu ia para casa feliz por ter agradado, tomava um banho morno e me enrolava no lençol, dormia cansada e no dia seguinte começava um vestido novo. Foi então que a vi, pela primeira vez a vi na rua, eu estava a caminho de sua casa para entregar-lhe um novo modelo e ia andando 20 minutos adiantada. Ela abria o portão da frente e parecia uma boneca de porcelana: usava o vestido com roda plissada, cetim de seda de um vinho escuro, na cintura o laço um tom acima e sandálias de salto muito fino, de um cobre envelhecido. Esperei a hora certa e fiquei espiando pela janela. Como de hábito, bebi meu chá na cozinha. Demorou mais que de costume e parou na minha frente, as duas mãos na cintura, o roupão colorido e em poucas palavras sentenciou minha morte: não preciso mais deles, não preciso mais de vestidos novos. Lentamente me recompus do susto, peguei a sacola com o vestido recusado e tantos outros que eu agora sabia que não faria mais. Me virei sem dar tchau, sem perguntas e fui caminhando pra casa a pé. Nenhuma explicação, nenhum sentido e quando girei a chave na porta de casa foi que caí. Demorei no banho. Coloquei meu melhor perfume e vesti o modelo recusado, o meu melhor trabalho, uma composição de rendas das mais finas, 4 metros de fitas de cetim, o tom bege como se tivesse caído no chá e pequenos cristais que reluziam com o movimento. Calcei meu sapato de festa e apliquei o batom. Quase já não ouvia a vitrola. Pus a flor no cabelo e assim como num tango lento e arrastado e dramático ateei fogo nas roupas. Morri com as unhas dos pés pintadas de vermelho.

8 comentários:

Anônimo disse...

Parece texto de Nelson Rodrigues, mais precisamente "A vida como ela é".
Bjossss

Velma Kelly disse...

jules, jules...
vou te mandar um presente por email.
saudades d'ocê.

Anônimo disse...

Achei q parece letra do pai.

Anônimo disse...

Como estão as negociações com a ana hupe?
Eu gostei.

Fulanas disse...

eu fiquei até sem ar...

Anônimo disse...

gostei demais.

Jubsky disse...

Forte, e poético. Uma adaptação pode ser linda mesma

bruna disse...

cadê o roteiro?