O dia da faxina é segunda-feira: a sua é a história de
amor mais triste de todas, ela disse, entre uma colherada de canja de galinha e
outra, e eu pensei que 90% do tempo que estou viva e consciente (acordada)
consigo não pensar nisso, mas que quando os 10% batem é como uma locomotiva que
descarrila e não sobra ninguém e a gente muda de assunto, fala de viagens,
desses destinos onde chove sem trégua, fileira de poças e lenços de papel e
aquela impressão de que os ossos ficam úmidos, as articulações ficam rangendo e
o corpo se torna esse porão com tantas camadas de lã e tecidos protegendo
móveis, joelhos que falham, quadris que deslizam um pouco para fora do lugar –
e todos esses cartões postais por escrever – e é como se andar te maltratasse a
ponto de você passar tardes cochilando num quarto de hotel, até o dia de pegar
um trem, desembarcar numa plantação de cravos and so all else above sonhar que
todo ano essa volta seria possível, esses dias em língua estrangeira e
schnitzel em excesso, todo o tempo do mundo para observar vitrais em catedrais
góticas, e esse domingo ameno feito de papel de presente e embrulhos coloridos,
piadas e mapas pra colocar em dia, esse domingo adiando a constatação de que a
poeira está sempre ali, à espreita, basta arrastar o sofá.
terça-feira, dezembro 31, 2013
domingo, outubro 27, 2013
Um discurso amoroso
e bilíngue para o casamento de C. e P., com todo o coração.
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Queridos,
::
Queridos,
Uma confissão: para escrever este pequeno discurso li livros,
fiz pesquisas, enquetes, conversei com veteranos bem sucedidos no assunto... e
meus rascunhos continuavam um misto de clichê, cafona e, pior, acadêmico.
Pensando naquele poema do Fernando Pessoa (“Todas as cartas de
amor são / ridículas / Não seriam cartas de amor se não fossem / ridículas”)
concluí que os discursos de amor também só poderiam ser ridículos. Exceto o do
Barthes, é claro. O que não ajudou em nada.
Então um dia ouvi no rádio uma música que a certa altura diz:
“E até quem me vê / lendo o jornal / na fila do pão / sabe que eu te encontrei”*
e pensei naquela primeira vez que a C. me falou do P., e naquele momento
eu entendi que a fila do pão, do banco, do aeroporto nunca mais seriam problemas
pra ela.
Portanto o que eu desejo para vocês agora é que aproveitem muito
aquele aparelho de som incrível que P. comprou e
que não deixem faltar música em casa: para encontrarem a afinação todos os
dias, para aprenderem um o ritmo do outro, para que o encontro de vocês seja
sempre uma dança com os passos que vocês inventarem juntos, esses que driblarão
eventuais descompassos e notas fora do tom. E que vocês possam dançar a toda hora e em qualquer lugar,
até na padaria – ridículo é falar de amor, vivê-lo é uma
sorte!
Com carinho,
::
Avant d’entamer ce petit discours, une confession :
j’ai lu des livres, fait des recherches, des enquêtes, j’ai parlé à de grands
orateurs et mes brouillons restaient clichés, kitschs et, pire encore,
académiques.
J’ai pensé au poème de Fernando Pessoa (“Toutes les
lettres d’amour sont / ridicules / Elles ne seraient pas des lettres d’amour si
elles n’étaient pas / ridicules”) et j’en ai conclu que les discours d’amour ne
pourraient qu’être pareillement ridicules. Sauf celui de Barthes, évidemment.
Ce qui ne m’a pas aidée.
Jusqu'au jour où j’ai entendu une chanson à la
radio : “Et même ceux qui me voient / lire le journal / faire la queue à la boulangerie
/ savent que je t’ai rencontrée” et j’ai alors repensé à la première fois où
C. m’a parlé de P., et comment, à ce moment-là, j’ai compris que
faire la queue dans les boulangeries, les banques, les aéroports ne serait
plus un problème pour elle.
Ce que je vous souhaite, c’est que vous profitiez
pleinement de l’incroyable chaîne que P. a achetée et que la musique ne
manque jamais chez vous : pour que vous trouviez le ton juste chaque jour, que
vous appreniez le rythme l’un de l’autre, pour que les moments passés ensemble
soient toujours une danse avec des pas inventés par vos soins, ces pas qui
esquiveront d’éventuels décalages et fausses notes. Et que vous puissiez danser
à n’importe quel moment et n’importe quel endroit, même dans la boulangerie –
parler d’amour est ridicule, le vivre est une grande chance !
Avec tendresse,
Jules
* Último romance, Los
Hermanos
terça-feira, outubro 08, 2013
Eu também quis expor o meu buraco como um zero flutuante entre dois ventiladores ligados diante da plateia silenciosa, estupefata ou apenas indiferente. Eu também fingi ter visto Halley atravessar o céu, eu também usei frases dos meus livros prediletos como se fossem minhas. Eu também tive pesadelos com um país de sincronias infernais em que todos os sapatos faziam o mesmo estalo ao tocarem o chão. Eu também nunca acreditei na existência de um sexto sentido e imaginei que o mundo terminaria no auge como uma frase de Flaubert. Eu também sonhei que guiava minha próproa ambulância. Eu também, como num filme de Lynch, nunca vejo o rosto de quem me persegue. Eu também como num filme de Lynch não sei aonde estou indo. Eu também como num filme de Lynch vejo coelhos nas tarefas mais domésticas.
Coelhos e louça suja por toda parte.
(...)
Tanta coisa pode surgir das elucubrações de um jovem solitário em algum lugar isolado. O mais difícil é viver a vida no atacado e no varejo e saber que tudo não passa de falta de sincronia, ovulação e violência consentida.
Laura Erber, Os esquilos de Pavlov.
sexta-feira, outubro 04, 2013
Diários da yoga - vol. I da retomada
No fim da prática (e não aula), sentados na mesma posição do
início, o professor faz as devidas considerações, pronuncia algo que eu nunca
entendo e todo mundo se inclina pra frente e fica ali com a cabeça sobre as
mãos em prece por um tempo indeterminado enquanto eu só penso “mas o que diabos”.
Eu poderia perguntar – e eventualmente aderir – mas têm esses mundos nos quais
eu permanecerei para sempre como mera observadora. A constatação começa antes,
quando misturo meus lindos sapatos aos tênis e chinelos (enfeitados com
miçangas) que ficam na porta do Studio de Yoga onde vim dar. É incrível que tanta coisa evolua, exceto a estética hippie.
Se eu fui fazer natação a primeira vez por causa de um
número da piauí, é natural que eu tenha ido parar na yoga outra vez depois de editar um
livro (mais ou menos) sobre, o que me faz temer o meu futuro pós pós-graduação.
De certa forma, a yoga é o mais próximo que tenho conseguido
de todas as teorias sobre o corpo que tenho lido. Ali o professor te incentiva
a “encontrar seu corpo confortável”, a conhecer seus limites e se deixar
transportar pelo fluxo da sua respiração. Seria lindo não fosse um tédio. Pior:
cafona. Não tem corpo sem órgãos que se constitua, e o único devir que eu
experimento é o da dor. No fundo a yoga é um misto de RPG (as in
Reeducação postural global, não o jogo) com autoajuda. É um “deixe seus
problemas lá fora” seguido de um “aproveite este momento que você escolheu para
dedicar-se a si mesmo”.
O fato é que eu sou muito influenciável, e que a minha
permanência na yoga se deve muito mais a coisas aparentemente sem importância,
mas que se grudam em mim de forma irremediável.
Por exemplo: eu comentava com a minha avó as agruras da
prática e do discurso, e ela me contou que o professor Hermógenes, um mito da
yoga carioca, foi cadete do meu avô no exército. O meu avô fazia os maiores
elogios ao professor Hermógenes, e por mais que não tenha lógica alguma, lá fui
eu, renovar o plano mensal e me comprometer com os mantras até dezembro. Eu não
conheci o meu avô, mas a essa altura já deu pra entender a minha linha de
raciocínio. Acho.
É como quando encontro T. nos lugares e momentos mais
improváveis: na bienal do livro, num cruzamento no Leblon, e a gente recebe
esses acontecimentos como um plano celestial maior e que de repente se revela
tão óbvio. Sempre me perguntam por você, a gente diz. Ele segue na moto, eu
desenrolo o tapetinho verde e de repente me dá uma cãimbra daquelas que só pode
ser praga de alguém. Mas penso na minha avó, no meu avô, naquela hérnia de disco de seis anos atrás, e lá no fundo da minha cabeça
aquela música do Lulu Santos fica se repetindo: “Eu ando tentando ver o lado
zen / o que é que nos ensinam nossos mesmos velhos males”. Gostar de música
pop, nessas horas, é uma merda.
Essa noite, na sala de espera, todo mundo tem mil palpites
sobre a energia, e tem uma líder que se encarrega de fechar as portas que dão
acesso à sala da prática, pra preservar aquele ambiente dos maus fluidos. Se
energia tem a ver com alergia, então tô nessa também, mas desconfio de que, tal
qual aquele trecho de uma música dos Strokes (“In spaceships they won’t
understand / And me I ain’t ever gonna understand”) esse seja outro papo sobre
o qual eu não entendo patavinas.
sexta-feira, setembro 27, 2013
Assum branco - vol. III
Que
dias há que n’alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.
Camões
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.
Camões
::
Identifico-me ao porteiro, que
trata logo de abrasileirar as coisas, e assim entro em casa de Manu. De repente
é muita gente com o mesmo nome nos meus dias, e eu penso se isso é evidência de
alguma coisa: pretexto, horóscopo ou um destino inescapável – cancelar o
inverno alemão e ir ler Pessoa à beira-mar.
Mas ainda é quinta-feira, Manu
tem um sotaque francês que eu adoro, uma habilidade para fazer coisas – tranças,
cartões, cadernos – e talvez seja o mês, o horóscopo ou um pretexto: tem sido
muito difícil não gostar das pessoas, de pisos de taco, das calçadas do
Flamengo.
Na janela L. e eu falamos de
encontros – ainda que pela metade – e trocamos um daqueles abraços que só mesmo
na primavera, e agora parece-me impossível
narrar isto que ainda se dá em algum lugar de nossas barrigas e ressacas,
porque Manu faz de suas delicadezas carimbos – reais e metafóricos – e eu não
tenho preparo emocional para tanto: uma poção mágica da Mongólia; um foie gras
feito pela avó já falecida, armazenado em pote datado; a foto da avó, de negro,
imponente; hortelã com rum em copos de geleia com enfeite artesanal feito com a
mão dela – e penso nos copos do Pedro e quero ter uma casa toda
assim, com objetos transformados, coisas que eram outras, interferências –
conquistar um território.
E toda aquela revoada de
pássaros espalhada por ali, ou nuvens, porque tem sempre alguma coisa que voa em dias
assim.
segunda-feira, setembro 23, 2013
sexta-feira, setembro 20, 2013
O dia que jantei com César Aira
pessoas são permeáveis ou
impermeáveis, mãe?
Muito antes de tudo isso
acontecer eu tinha andado por Santiago atrás de todos os livros possíveis do
Alan Pauls e do César Aira. Eu tinha até pensado em mudar o destino,
desembarcar em Buenos Aires, entrar numa livraria e sair um ano depois,
hablando sola e cantando uma música do Devendra, uma que talvez ainda nem
existisse, mas que meses depois seria mais ou menos a trilha sonora perfeita
daqueles dias.
Antes, também, num café com P.,
a gente tinha trocado figurinha sobre alimentação saudável: o que M. achava
impossível, visto que eu era irônica demais para ser hippie; o que L. achava
meio hilário, a ponto de revelar que houve um tempo até que eu passava ghee no
olho (e Aira riu) – o que não nos impediu de encher a cara de cerveja e pão com
manteiga, mesmo que eu estivesse com a pior dor de garganta do mundo e que a
nossa mesa fosse praticamente numa esquina onde ventava pacas.
César escolheu o magret por causa do comissário Maigret, e eu ri lembrando da aula de francês em que
desisti do Simenon por ter chegado à conclusão que Madame Maigret era uma
submissa e que seu marido era um machista. Sim, eu já fui dada a extremismos,
muito antes de tudo isso acontecer.
Tentamos arrancar dele o que
fosse, desde as declarações mais banais até um spoiler de um livro futuro.
Conseguimos uma ideia para uma novela que ele gostaria de escrever, mas foi P.
quem me fez rir de novo, dessa vez para todos, quando disse que tinha comprado
uma centrífuga e que incluíra o episódio do suco verde em sua peça de teatro –
o que ao mesmo tempo me fez ficar vermelha de vergonha.
César ficou ali à deriva em
meio ao nosso português, a uma ou outra declaração não-ortodoxa sobre a vida
conjugal de Alan Pauls (chacun son coluna social) e outras gentes mais próximas,
algumas delas em estado de pré-surto (ou cocaína, como sugeriu M.). No fim da
noite o mistério permanecia no meio sorriso insistente de César, e quando ele
pediu uma sobremesa de morangos fui sensata o suficiente para perder a piada
óbvia e sem graça que eu poderia fazer – obrigada, a quem quer que seja o
responsável.
O fato é que aquela combinação
de morangos com o vento e o cigarro que César fumou depois – e que eu fumei
junto em pensamentos – pareciam a mim muito fieis a duas novelas que ele já
tinha escrito, que eu lera embasbacada, que eu não sabia mais quantos delírios
continham, e eu fiquei quietinha vagando pela minha cabeça de leitora
paranoica. Mas é incrível: assim como livros, tem vidas que não existem, e eu fico monga
em eventos desse porte. Hay que aceptarlo.
quarta-feira, setembro 18, 2013
Yoga for dummies
Voltei ao mundo om, mas a verdade é que toda vez que deparo com um texto de alguém que nada meu coração se treme todo. Clica aqui, desça um pouco e lá estarão os versos do Ismar.
Enquanto isso, um soft opening por esse outro caminho.
Enquanto isso, um soft opening por esse outro caminho.
segunda-feira, setembro 16, 2013
Assum branco - vol. II
(outros sinônimos)
Ali naquela conversa eles
planejavam fazer mesas com as próprias mãos – é o que os artistas perseguem,
não é? Deixar seu rastro. Da outra vez que estive ali havia um martelo
displicente sobre uma pilha de livros e eu comecei uma coleção de fotos dos
cantinhos, dos ramos de flores, das folhagens na cozinha, das fotos e postais.
Desta agora o desenho da porta emoldurado na parede, maços e maços na varanda,
uma briga que eu nem sei se acabou bem, um hematoma na perna direita que me faz
crer que nos atacamos.
Entre uma dose de vinho e outra,
na confusão dos copos de requeijão Aviação que nos serviram de taças, no barulho que 12 pessoas fazem juntas numa tarde, Pedro
puxa uma cadeira e me conta de suas aulas de teatro, da temporada, da tentativa
de entender o que acontece consigo depois de experimentar estar em cena, seu
corpo, sua carne – eu quase choro, porque ele sabe que aconteceu um troço meio
mágico que ele não dá conta de explicar, e sinto saudade de sentir isso também,
e devoro tomates quando ele diz que está dançando. Pedro está dançando – uma caixa
de surpresas – e tem como mestra uma ex-bailarina de Pina Bausch – e eu vejo
toda uma vida que eu poderia levar em Pinheiros, vizinha da cozinha com piso de
ladrilhos, da estante de livros que contém dois Suicídios exemplares
emparelhados, do armário amarelo. Pedro está dançando – eu esqueço de contar para ele que comprei passagens para Wuppertal – e com certeza ele vai
entender tudo o que precisa.
quarta-feira, setembro 11, 2013
Assum branco*
Onde está teu sinônimo no mundo?
Clarice Lispector, Um sopro de
vida
::
::
Estou obcecada por uma música tão
linda quanto triste* e não sei o que fazer, eu disse a ela. É como se eu
perseguisse uma melancolia. Faz sentido?, eu perguntei e ela riu. Deve fazer.
Perguntei, também, se era muito
cedo pra falar dele, e é claro que era, e ela concordou. É que aquele dia, no
sofá, tudo o que ele falava eu emendava, exceto o final: comecei a chorar
naquele segundo ato (eu também); e aquela neve (eu também); e não conseguia
parar (eu também); e como é que se levanta da cadeira depois? (eu também); eu
estava bem perto do palco, peguei um pouco da neve e guardei no bolso do casaco
(ele disse, e como é que se levanta do sofá depois? E, de alguma forma, acho que ainda estou por ali, esparramada sentindo o peito dele subir e descer.)
quinta-feira, agosto 29, 2013
Moradas
En la mano crispada de un muerto,
en la memoria de un loco,
en la tristeza de un niño,
en la mano que busca el vaso,
en el vaso inalcanzable,
en la sed de siempre.
Invocaciones
Insiste
em tu abrazo,
redobla
tu fúria,
crea
um espacio de injurias
entre
yo e el espejo,
crea
um espacio de leprosa
entre
yo y la que me creo.
::
explicar con palabras de este mundo
que partió de mí un barco llevándome
Alejandra
Pizarnik
segunda-feira, agosto 05, 2013
1923
A minha avó, naquela
manhã, mais parecia uma estrela de cinema ou uma imagem sagrada, dessas que
todos querem tocar e adorar. A cabeça branca da minha avó – cor de neve
brilhante, anos de xampu especial – se via de longe rodeada por outros cabelos,
muitos adornados de brilhos e flores de domingo. A minha avó, naquela manhã,
recebeu cumprimentos, apertos de mão, abraços e exclamações que saíam pelas
mãos e pelos sorrisos de todos que foram parabeniza-la pelos seus 90 anos.
A minha avó, naquela
manhã, desceu do carro em frente à estação ferroviária de Nilópolis, subiu as
escadas da igreja apoiando-se no corrimão – que ela julga indispensável – e
sentou-se no terceiro ou quarto banco do lado esquerdo. Recebeu as saudações do
Frei José – que há uns 40 anos atrás casou uma das minhas tias, e que há uns 30
anos atrás me batizou, e que já fez outras bênçãos para a família – e
acompanhou uma missa repleta de crianças, cantos, palmas e gestos, aqui e ali,
que interpretavam algumas das canções. Minha avó subiu ao altar ao término do
culto e leu, encabulada, palavras sobre as graças de se fazer aniversário.
Minha avó rezou, levou uma salva de palmas e à saída comeu um pastel de queijo
típico de feira, iguaria disputadíssima pelos fieis dali.
A Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição recebeu a minha avó com tanto carinho que quase que ela
teve que sair fugida, pois cada um que ia cumprimentá-la queria também falar
com as filhas e a neta a tiracolo. A Paróquia de Nossa Senhora da Conceição,
naquela manhã em que a minha avó parecia uma estrela, me deu a exata noção da
ideia de comunidade, e uma inveja tão grande do subúrbio que, no caminho de
volta, olhei praquelas casinhas imaginando a minha avó por ali, comendo bolos e
gostosuras de uma vizinhança que jamais a deixaria voltar pro Leblon – e nem
suas filhas e neta a tiracolo.
A gente vai passando
pelas pessoas no dia a dia, e aquela gente dali vai parando pelas pessoas, numa
tônica tão distante da nossa, e tão mais lógica. A minha avó, de fato, é uma
estrela, e o subúrbio desperta mesmo uma ternura, porque é justamente o que
emana. E suas filhas e neta a tiracolo, que sorte, provaram desse espelho,
lugar que é contra a assepsia dos afetos.
Na volta pra casa eu fui
pensando em alguns poucos sambas que sei cantarolar, e em como muitos deles nasceram
desse sentimento de pertencimento, de uma relação com o seu lugar. Velhas rixas
que compuseram hinos declaratórios a diversos berços, ou apenas odes a seus
morros e feitiços. Tem alguma coisa nisso que eu queria pra mim. Eu não sei a
minha avó mas eu, quando cheguei em casa, nem tomei banho e passei aquele dia
sem lavar as mãos, querendo guardar um pouco mais, com um cd do Noel Rosa no som.
Desconfio de que ela tenha feito o mesmo.
quarta-feira, julho 24, 2013
Sala de espera
Eu limpava os óculos pela
terceira vez ao dia – e ainda nem eram 11 horas – enquanto pensava em você. Não
que eu precise de justificativas para pensar em você. Ou para limpar meus
óculos. Se você usasse óculos saberia como é: acordar, lavar o rosto, pô-los na
cara. É parecido como quando um par novo de óculos fica pronto: as lentes deste
sempre parecem melhores que as do antigo e é como se você nunca tivesse
realmente visto as coisas antes. Talvez seja que as lentes realmente melhorem.
É uma indústria, vai saber. É assim que se começa uma coleção, que numa
perspectiva positivista pode evoluir para uma obsessão. Tenho nove pares de
óculos, mas não se preocupe, a sua vista cansada não tarda.
Há um futuro interessante para
nós e nossos óculos: todo dia acordar, lavar o rosto, pô-los nas caras. Eu, pra
te ver de longe, você, pra me ver de perto, como se nunca tivéssemos nos visto
realmente antes. E aumentar as coleções: você com seus dois pares iniciais, eu
com cerca de 14 armações – uma soma de 16 possibilidades diárias e matinais para
nós. E se somarmos os reflexos das nossas imagens nos óculos um do outro
teremos uma conta que eu não sei fazer, e nós e nossos óculos e nossas imagens
refletidas – todos os dias, naquele ritual rotineiro pelas
manhãs, exceto aos sábados e domingos, dias de hibernar entre travesseiros,
peles e córneas sem lentes, indústria ou acetatos – obcecando juntos.
Pensava em você, limpava meus
óculos n° 6 e decidi tudo isso, essa sucessão de hastes, consultas
oftalmológicas, graus em declínio ou ascensão, modismos, promoções, qualquer justificativa
pra gente se ver todo dia, dormir e acordar todo dia, lavar o rosto,
pormenorizarmo-nos a qualquer distância, intermediados por vidros multifocais.
Ou cirurgias de cataratas – antes das 11 horas eu já queria toda essa vida com
você.
quinta-feira, junho 06, 2013
top 5
Das anotações do meu caderno de pós-graduação,
algumas frases entreouvidas entre um delírio teórico e outro:
1) Dente é patrimônio.
2) Eu queria ser uma vírgula no texto dele!
3) Clarice [Lispector] não fala, Clarice vaticina.
4) O Facebook é um Retrato de Dorian Gray às
avessas.
5) Coisa boa é ir pra um motel sozinho com seus livros.
Bônus: "Só gosto do que é melhor em tudo,
desde música, desde pintura, até o arroz com feijão." (João
Antonio)
domingo, junho 02, 2013
4 aberturas de romance
Aujourd’hui, maman est morte. Ou
peut-être hier, je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile: “Mère
décédée. Enterrement demain. Sentiments distingues.” Cela ne veut rien dire.
C’etait peut-être hier.
Albert Camus, L’étranger
I did not kill my father, but I
sometimes felt I gad helped him on his way. And but for the fact that it
coincided with a landmark on my physical growth, his death seemed
insignificant compared to what followed. My sisters and I talked about him the
week after he died, and Sue certainly cried when the ambulance tucked him up in
a bright red blanket and carried him away. He was a frail, irascible, obsessive
man with yellowish hands and face. I am only including the little story of his
death to explain how my sisters and I came to have such a large quantity of
cement a tour disposal.
Ian McEwan, The cement garden
(No fim, tu morres. No fim do
livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem
razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu
conto. E ficamos de contas saldadas.)
Miguel Souza Tavares, No teu
deserto
No final ela morre e ele fica
sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes
da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que
ele se chama, se chamava e continue se chamando Julio. Julio e Emilia. No
final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura:
Alejandro Zambra, Bonsai
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