sábado, dezembro 20, 2008

Keep me in mind

A conversa começa com o clássico “o problema não é você, sou eu”, e é claro que é, não estou nesse divã à tôa e nem ela me escuta de graça, e o tempo, o nosso, é caro demais pra que eu fique olhando pra ponta do sapato e dizendo que eu queria ser instrumento pra fazer música ou talvez Capitu, ou vento perdido sem rumo no meio dos cabelos dele pra sempre, ou pingo de chuva pra cair grosso da árvore e escorrer pelo rosto de uma amiga bem quando ela soltar uma gargalhada e inflar as bochechas.

Ela acha lindo, e diz que isso daria um texto, e elogia minha capacidade narrativa e repete as mesmas frases da última sessão, quando ela também achou que outro monólogo qualquer dava pra virar post de blog, e desde que eu resolvi dizer a ela que gosto de escrever ela pergunta “você já escreveu sobre isso?” “você tem um texto sobre isso?” e por aí vai. Nessas horas eu fico na dúvida se ela é psicóloga ou editora, então descruzo as pernas, miro na caneca com a cara do Van Gogh e começo outra ladainha sobre as mesmas coisas, sempre sempre sempre os mesmos nomes, os mesmos gestos, os mesmos ódios, desde quando eu aprendi a repetir o refrão assim?

Me dou conta de que ela também repete, indagações que se empilham iguais umas sobre as outras, eu rebato religiosamente com as mesmas respostas e agora já não sei mais se sou ou ela, o ovo ou a galinha, só sei que a última sessão foi igual à penúltima, que foi igual à antepenúltima e etc, parece que estamos decorando uma fala ou roteiro que não, eu não escrevi.

Preencho o horário explicando, pela terceira ou quarta vez, porque gosto tanto da Madonna (porque ela não se repete, digo em algum momento, com cara de Flora), quase começo a cantar e dançar, aí sim haveria uma grande emoção. Mas é muito arriscado, dou um sorriso, feliz natal pra você também, ano que vem a gente se vê, será?

Acabo voltando, essa falta de coragem e de ação que tanto discutimos, e escarafunchamos todos os medos, sempre ali enfileirados para serem diagnosticados e catalogados, então nos referimos a eles por nomes quase científicos, ela mexe na luminária pra ter certeza de que eu estou chorando (ou quase), eu limpo os óculos e digo "pois é", penso em "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" e lá vamos nós, sabe? pois é, eu mesma não sei mais.

Já não garanto nada. Não garanto que eu volte, não garanto que haja sol em janeiro, não afirmo que vou seguir em frente e esquecer, não afirmo que dessa vez aprendi a dizer não e me desligar das pessoas, ela sabe que demorei muito mais tempo pra sair da fisioterapia do que eu deveria, talvez ela saiba que penso em larga-la, talvez ela tenha percebido quando respondi mais rispidamente, ou quando mudei de assunto pra não falar de suicídios ou de vontades de: andar de bicicleta, comer pudim, suar, consertar os olhos, conhecer o Peru.

Me repito tanto, e ela também, dá uma confusão de saber se é porque preciso continuar, ou se já passou do horário de botar a mochila nas costas e ir por aí, deixar de teorizar as coisas.

Vou dizer a ela que escrevi sobre isso, que deu um texto de adeus, que peguei a sapatilha já meio gasta e entrei na sala de aula, fiz um coque caprichado e resolvi os meus problemas na aula de ballet, sentindo que os músculos das pernas ainda funcionam, que a coluna aguenta e que os braços continuam leves, as mãos graciosas.

Feliz ano novo.


:: "It's only a trick if you make it a trick and you're wondering how to get yourself out of this one" Jamie Lidell in Green Light

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Bipolar

Eu sei que às vezes (muitas) esse blog fica pessoal demais, e que algumas perguntas são recorrentes. Pior: são mais perguntas a cada post, a maioria delas julietanas ao extremo.

Enfim. Existem coisas que me consomem de tal forma que não posso deixar passar, e a luz da esperança se acende quando penso que possíveis resoluções podem vir de eventuais comentários. Eu sou do tipo que acredita em letras de música, por que não em leitores virtuais?

Esse é mais um caso que me aflige, daqueles em que a ambigüidade dos fatos gera sentimentos inconciliáveis, de maneira que preciso de ajuda (psiquiátrica, talvez): como faz pra conciliar a morte do Gonçalo na novela com show da Madonna no dia seguinte?!

quinta-feira, dezembro 04, 2008

The "Vizinho Issue" - parte III

(ou "A vingança é um prato que se come frio")

Aqui na rua é assim: o seu carro que estava estacionado na calçada oposta ao prédio some à tarde depois que o reboque passa e nenhum dos porteiros avisa, afinal por que tocar em assuntos desagradáveis como esse, não é mesmo?

Então a pessoa sai do prédio, chave do carro na mão e nada, uma vaga vazia, uma interrogação na cabeça e muita confusão, até que começa a se perguntar:

1) Será que estacionei na garagem?

2) Será que eu estava bêbada ontem quando cheguei?

3) Será que eu continuo bêbada?

4) Será que roubaram?

5) Será que o carro perdeu o freio e desceu ladeira abaixo?

Então, cinco minutos depois, quando você pergunta pro porteiro se ele viu o seu carro por aí, ele responde, baianamente:

Ele tava aí de manhã, eu acho que o reboque deve ter levado ele porque agora não tá mais...

Ele pensa que eu sou trouxa, mas de uma coisa tenho certeza: a culpa é do vizinho.

sexta-feira, novembro 28, 2008

Fale agora ou cale-se para sempre

Eu vou te explicar: o que acontece é que ele queria casar, entende? Casar mesmo, de assinar documentos, mudar de sobrenome, jogar buquê, assumir essa postura de uma vida a dois e tudo o que vem junto dela: segunda via de RG, assinatura nova no talão de cheques, respostas na segunda pessoa do plural, confusão de óculos de grau nas mesinhas de cabeceira e essas coisas todas. Eu teria que dizer que ele é o sujeito a ser comunicado em caso de acidentes. Eu teria que comprar dois tipos de shampoo no supermercado, e avisar sempre que eu saísse do trabalho mais tarde. Eu teria que telefonar da locadora pra saber se ele já tinha assistido a determinado filme. Eu teria que me convencer de que “nós dois somos um”. Provavelmente eu teria que mudar de operadora de celular pra falar de graça com ele até que a morte nos separasse. E essas não são as coisas que mais me apavoram.

Eu teria que dividir com ele as gavetas do banheiro, e fingir sempre achar normal que os meus cremes ficassem ao lado de uma loção de barba. Eu teria que adotar o hábito de deixar espaço no sofá pra ele, deixar algum tomate na salada pra ele e de repente eu teria que entender que os meus livros conviveriam pacificamente numa prateleira ao lado dos livros dele, assim como os meus discos se alternariam nas caixas de som com as músicas que ele guarda e então eu teria que achar normal que música clássica tocasse no mesmo dia em que um ícone do rock fizesse solos de guitarra. Não é pelo gosto, é uma questão de humor, eu teria que faze-lo entender que em domingos chuvosos só tolero o Bolero de Ravel na vitrola, que a poltrona do quarto é na verdade um cabideiro, que meu cabelo nunca funciona de manhã, que não suporto telefone que toca, que sou da corrente que crê piamente que só camas individuais para os seres salvam, que as pilhas de revistas que nunca vou ler de novo um dia servirão para pesquisa e que preciso, sim, de post-its espalhados pelos cantos e que nunca tenho sapatos suficientes no armário, assim como nunca há a quantidade exata de chocolates na dispensa.

É que essas manias são muito minhas pra de repente serem dele também, e as minhas coisas já estão todas certinhas nos seus lugares, e eu sou muito eu pra de repente virar uma mistura nossa. Deve ser essa insistência que eu tenho de tentar prever e de encontrar defeitos antes. Ou deve ser egoísmo mesmo, deve ser porque eu sou realmente egocêntrica, não importa. O que importa é que eu não arrumaria meus discos em ordem alfabética como ele quer que eu faça, e que eu não disfarçaria o mau-humor quando ele insistisse em achar que eu gosto de acordar. E que eu não conseguiria ter por ele o mesmo amor que tenho pelos meus dias sozinhos e calmos, não conseguiria ter por ele o mesmo amor que tenho pelo meu edredom de solteiro, ou pela mesa do escritório cheia de crayons de cera, ou pelo meu pijama de moletom furado e manchado. Ou por você. O problema é que com ele eu não consigo me acostumar a ficar boba, pelada, gripada, mole. O problema é que com ele eu não consigo me acostumar a ficar sem você. E com você eu invento tudo o que ele só quer inventar comigo, filho, tesão, máquina de lavar, mesa para dois. Com você eu sei que daria certo, que não precisaria de manual nenhum, que eu saberia soletrar o sobrenome e que poderia misturar literatura, acordes, cheiros, verbos, pernas. O problema todo é que com você, eu sei: não haveria separação total de bens.




:: este texto está na Revista EmBranco, do meu amigo Thiago.

quarta-feira, novembro 19, 2008

902


Na Fonte da Saudade, joga-se uma partida de pega-varetas antes que se comece um dia de trabalho (sem fins lucrativos). Não são tão bons quanto os da infância porque são feitos de plástico, os de madeira ficaram para trás. Não se sabe quantos pontos vale cada cor, portanto vence quem pega mais varetas, e baixa-se o rigor nas estratégias, afinal o que importa é divertir-se, e não competir.

Ali bebe-se água natural da fonte que cai direto na garagem do edifício, e muitas vezes as garrafas ficam com gosto de cachoeira. E quando o trabalho não anda, come-se chocolate, joga-se paciência, fazem-se pesquisas sem objetivo em sites, revistas e livros, ou fotografam-se bonecos de toy art.

Na cozinha encontra-se um pandeiro, um livro de poesias de Bukowsky ao lado dos livros de receitas, e panelas de cor vermelha, além de xícaras com jeito retrô para tomar café. Come-se comida de qualidade, consome-se vodca e tingi-se tecido também, desde que o ato espalhe água verde (ou rosa) pelo chão, fazendo bagunça e alegria de todos.

Na Fonte da Saudade dá medo quando chove ou há trovoadas, os ventos são uivantes e vê-se as ondas que a Lagoa começa a formar durante tempestade. Tenta-se distrair com uma caixa cheia de lápis de cera, e faz-se desenhos artísticos enquanto o email não envia as fotos. Na Fonte da Saudade o email nunca envia as fotos.

Em cima da mesa faz-se um monte de versos nonsense com ímãs de palavras, ouve-se música na maioria das vezes estranha e canta-se em coro canções de amor com letras de rimas. Ri-se de piadas sem graça ( e gargalha-se três semanas de piadas realmente boas), especula-se que tipo de coisas entupidas uma roto-rooter poderia desentupir (as que entopem, oras!) e planeja-se uma vida em Paris.

No banheiro verde traça-se um roteiro que inclua uma cena para a qual a melhor locação fosse o banheiro verde, seca-se o cabelo com cuidado e vestem-se os vestidos mais fantásticos acompanhados de arcos e laços na cabeça.

No escritório, on parle le français inventado, alguém ama pessoas inventadas e tudo o mais é imaginado também, as vozes idiotas que falam por lá, as peças de teatro que serão escritas em dez dias e as caras de choro quando o telefone não pára de tocar.

Na Fonte da Saudade há grades de proteção nas janelas. Circulam muitas crianças por ali.




segunda-feira, novembro 10, 2008

O fim das vozes no meu rádio

(para Paula)

- Às vezes eu fico enjoada de todas as músicas que eu tenho e então faço isso, fico escutando tudo o que aparece. E de repente alguma coisa faz UAU!
- E quando nada faz?
- Mas faz, acaba fazendo. Algumas músicas batem de primeira, é claro. Mas sem querer eu acabo dando uma segunda chance. Tiro um cochilo, escuto de novo num outro dia, num outro clima. Acho que tem a ver com o humor, dias chuvosos, por exemplo. Algumas músicas parecem ter sido feitas pra esses dias, devem ter sido criadas sob dilúvio.
- De fato. Eu tenho preferido as solares, as que dão vontade de aprender a tocar bateria.
- Eu ando com vontade de tocar baixo. Isso quando eu não tenho vontade de ouvir umas coisas do além. Acontece isso também, uma música que fica martelando na minha cabeça de manhã, geralmente nostálgica, quase sempre duvidosa. E é como se só a execução contínua da tal música pudesse salvar o dia. E é mais que uma vontade, é um precisar muito definitivo.
- É quase drástico, credo!
- É, é drástico...
- Exemplo?
- Ah, não, isso eu não digo.
- Por que não? Qual é o dilema?
- O dilema é que você vai me julgar.
- Você me julgaria se soubesse dos lapsos que eu tenho na vida, e alguns são bastante graves.
- Como?
- Como só ter começado a escutar David Bowie esse ano. Pior: descobrir que eu sempre adorei uma música sem saber que era dele.
- Como você só começou a escutar David Bowie esse ano?!
- Olha aí, julgamento.
- Está certo. Você merece saber: hoje acordei com muita necessidade de ouvir uma música do Kid Abelha.
- Kid Abelha! Na época dos Abóboras Selvagens ou depois? Ou quando eles tentaram se chamar só “Kid”?
- Da fase Kid Abelha mesmo, de quando cantávamos Fazer Amor de Madrugada nas festinhas. De quando jogávamos as mãos para o céu e tal. Quando a gente vivia em show do Kid Abelha no Metropolitan, lembra? Quando o Metropolitan ainda era Metropolitan.
- Claro! Quando o Prince ainda era Prince, o Jota Quest ainda era J. Quest... Por que a gente gostou tanto assim do Kid Abelha, hein?
- Vai saber. Acho que porque a gente achava tudo possível naquele tempo. Se a Paula Toller fazia sucesso com aquela voz...
- Mas por que você queria tanto ouvir Kid Abelha? Qual música? Não vá me dizer que era Grand Hotel...
- Não! Pior...
- Pior do que ter passado a vida toda gostando de O Astronauta de Mármore e deixado um cd do Nenhum de Nós na prateleira só por causa dessa música e só depois de a-nos descobrir que é uma versão do Bowie?! Você tem idéia do que eu passei pra justificar a presença daquele cd ali no meio dos outros?! E ninguém nunca me disse que era uma versão!
- Eu tive um sonho, vou te contar.
- Que sonho?!
- Não, eu tive um sonho, vou te contar, eu me atirava do oitavo andar, a música do Kid Abelha!
- Aaahhh!
- Pois é... Pelo menos eu sabia que música era, pior é quando eu acordo precisando de uma música e não sei qual. Parece que falta inventarem alguma coisa nova.
- Isso acontece sempre nos dias nublados.
- Dias nublados são bons para ouvir Hootie and The Blowfish.
- Você tem escutado alguma coisa desse século?!
-Você tem escutado Ziggy Stardust pela primeira vez na vida. Acho que você não está em condições de questionar meu momento musicalmente adolescente.
- Ok, ok, eu me rendo. E confesso que de vez em quando o Lulu Santos ainda canta por aqui.
- É melhor não resistir e se entregar... A gente tinha o que? 17, 18 anos?
- Por aí. A gente gravava fitas com as melhores músicas.
- A gente escrevia partes das letras na capa dos cadernos. O que será que as pessoas escutam hoje em dia? Às vezes eu coloco na estação de rádio pra ter uma idéia do que as pessoas ouvem. Mas me parece que até hoje todo mundo escuta O Último Romântico ou Como Uma Onda. Mas eu só escuto rádio de mãe, então não sei...
- E Carly Simon. Toda vez que toca Carly Simon no rádio eu sou tomada por um espírito revolucionário, como é que as pessoas se conformam em ligar o rádio e ouvirem essa mulher cantando? Eu fico possessa, xingo o locutor, xingo as pessoas que ainda toleram esse tipo de coisa.
- Vai ver os caras das rádios seguem essa mesma política de acordar impregnados de uma música. Mas o que a Carly Simon te fez?!
- Não é ela, é essa coisa, sabe? Uma seqüência de músicas toscas de 20 anos atrás com tanto artista por aí, então a gente tem que fazer investigações pra descobrir bandas legais e pessoas atuais. Teve uma época que eu me dei conta de que só ouvia gente morta, um horror! Minha coleção de cds só não estagnou porque volta e meia saía uma coletânea póstuma de alguém.
-Cruzes! Se a gente tivesse continuado a escutar o Kid Abelha e o Lulu Santos não teria problema, eles vivem com discos novos.
- Eles morreram também, só não querem admitir ainda.
- Pode ser... Outro dia saí pra dançar com uns amigos e não conhecia nenhuma música. Nem umazinha. Me senti uma tiazona, sabe? Por fora.
- Sei. Acho que é assim mesmo, acho que é assim que se começa a envelhecer, talvez eu esteja sendo dramática, mas acho que é por causa dessas coisas que a gente acaba voltando aos clássicos.
- Ou ao contrário? Por causa dessas coisas que eu fico dias nas lojas ouvindo discos.
- É, só que pra mim isso só piora, é o mesmo que acontece quando entro numa sorveteria, são tantas opções que acabo sempre indo para os clássicos. Acabo me dando conta de que tem tanta coisa nova no mundo e ao mesmo tempo caio na real desses lapsos, penso no Bowie, no Velvet e resolvo preencher as lacunas.
- Faz algum sentido. O problema é que eles já estão prontos pra gente gostar, né? É menos arriscado e aí acontece aquilo, uma discoteca de shows que a gente nunca vai ver.
- Eu sei. Mas imagina se numa dessa tarde de aventuras eu fico escutando as músicas da Katy Perry enquanto eu poderia ouvir todo o Supertramp?
- Ou Hootie and The Blowfish, se tiver nuvem no céu...


:: She's uncertain if she likes him
But she knows she really loves him

David Bowie in Drive-in Saturday

quarta-feira, novembro 05, 2008

Marcha ré

Quando a gente se encontra e você é glacial, quando a gente se encontra sob nuvens esparsas em céu cinzento, quando a pele não gruda e o abraço não derrete e o olho não brilha, quando a gente se encontra e tudo fica turvo, o cabelo fica fosco, quando você olha através pra ver quem vem atrás, quando a gente se encontra e vê que não sobrou nem fagulha nem destroço, quando a gente se encontra e não faz mais diferença, quando a gente se encontra e eu fico à beira do abismo gritando sem escutar meu próprio eco, quando a gente se encontrar de novo finja, cole teus lábios na minha bochecha por mais algum segundo, quando a gente se encontrar de novo disfarce um pouco, quando a gente se encontrar me atordoe, pode ser teatro, não suporto me sentir tão comum.

segunda-feira, outubro 27, 2008

Snakes and ladders

Uma neblina se abate sobre a cidade e não se vê São Conrado da Av. Niemeyer; uma manicure carioca diz que votou no Trivella no primeiro turno e que, portanto, votaria no Paiva no segundo, sendo ela menos uma eleitora do Gabeira, ou seria Caveira?; o Panorama de Dança anuncia nomes de teatros dos quais nunca ouvi falar; o Tim Festival parece ser o único dentro da categoria “festivais” com o qual eu consigo lidar; já faço planos para a próxima fantasia de carnaval; fico apavorada a cada conto de Andersen que termino de ler; me pergunto se a cor bege dos corantes Guarany está em falta no mercado; escuto repetidamente uma música que foi definida por um amigo como trilha sonora de um filme imaginário numa cena de passagem de tempo; olho, minutos a fio, a foto de Bruno Cezario no programa do ballet e não me convenço de que ele seja desse mundo; sonho com cachorro-quente; tenho urgência de mar; após o duelo onde fatalmente um dos cavaleiros sempre perde, uma criança na platéia do teatro diz “perdeu” e é realmente engraçado estar perto delas; perder-se em Santa Teresa requer um casaquinho, caso você vá parar acidentalmente nas paineiras; é sempre melhor ir embora quando todo mundo quer que você fique, seja do mundo ou do bar; volto ao Saara, nunca ao jardim; tem goteira no carro; arranhões também, e as pessoas insistem em me lembrar que eles estão ali; alguém já reparou que a acústica do Bar Lagoa é péssima?; as histórias escritas têm ficado todas pela metade; existe saudade de sentir com um o que sempre sinto com outro, e vice-versa, nunca dá pra misturar os dois num só; o show termina e muitas pessoas continuam cantando em coro; a pele fica bem melhor depois de uma noite dormida com a cara empastelada de Hipoglós, mas se a pessoa é casada, como faz?; nadar é preciso; isso que vem pela fresta da janela do carro à noite deve ser o verão; cortar unhas é uma arte para poucos; Acautele seus objectos, dizem duas placas dentro da igreja antiga da Av. Passos; pulo alto quando escuto aquela marchinha; libélula é uma palavra legal enquanto que suvaco é inaceitável, ela diz, mas eu adoro suvaco e gosto também de ampola; são lindas as bolhas de sabão voando e estourando nos fuços dos cachorros; e quando o ar-condicionado quebra?; e quando a casa começa a fazer barulhos no meio da escuridão sozinha?; e quando eu fico com esse jeito de quem quer fazer besteiras e soltar fogos por aí é quando encosta no meu pescoço a tua língua; vem à tona sempre uma dúvida cruel e eterna, um dia quero gente, noutro quero edredom pra me esconder, noutro quero continuar o encontro; antes de dormir esfrego sempre os olhos e penso que as lentes não servem mais; o espaço é o suficiente pra ela ficar tão próxima que até gruda; tem sempre mais alguma bobagem pra ser dita no fim da noite e ser tão engraçado que a gente estoura de tanto gargalhar na escada dizendo tchau; tem outra música repetida também que diz "eu vou ver o jogo se realizar de um lugar seguro", mas não era pra ser o contrário?

quinta-feira, outubro 16, 2008

The "Vizinho Issue" - parte II

Já faz algumas semanas que não encontro o carro do vizinho ocupando uma parte da minha vaga. O que deveria ser motivo de alívio virou uma angústia ainda maior que antes. O fato é que em tempos de mansidão, a possibilidade de encontrar o carro do vizinho ocupando espaços alheios gerava uma série de hipóteses que emocionavam meus dias. Na minha cabeça eu chegaria no prédio quase ao mesmo em que o vizinho e me espantaria ao descobrir que: a) o vizinho é na verdade uma vizinha mais magra que eu, ultrajantemente cafona e míope; b) o vizinho é um senhor de idade que mora com seu labrador cor de caramelo; c) o vizinho é o príncipe encantado e vamos nos amar no elevador até o primeiro andar. E na minha fantasia mais ousada o vizinho continuaria sendo um sujeito mal-educado que, com um pouco de sorte, me destrataria de novo e então começaríamos um bate-boca exaltado sobre respeito ao próximo, política de boa vizinhança etc, juntaria gente pra ver e a minha analista acharia que fiz progressos emocionais profundos ao enfrentar o sujeito assim.

Mas com essa chuva que faz, o vizinho deve estar parando o carro na garagem, onde não há vaga disponível pra mim, de forma que estaciono sem maiores percalços. Toda a graça que poderia haver se dissipa no momento em que faço a curva da rua e vejo três vagas livres e desimpedidas à minha espera. Meus batimentos cardíacos imediatamente caem, é um tédio.

Agora sou eu quem pára o carro sem respeitar a marcação, na esperança de que o vizinho, ou algum outro, quem sabe até mesmo o porteiro, me chame atenção. Enquanto meu ato transgressor não tem nenhum feedback, preparo um plano mais agressivo de ataque: invadir a garagem e deixar o carro ali em qualquer canto. E enquanto tomo coragem, me concentro numa outra questão igualmente importante e que pode trazer de volta o vizinho, seu carro e uma série de revoltas engajadas de minha parte: o sol, há de brilhar mais uma vez?

segunda-feira, outubro 06, 2008

Atrás de mandinga de amor

- Era uma mistura de sete quiabos com mel, tinha que colocar todos ao lado de uma vela na quarta-feira. Mas não me lembro de tudo e além disso só vale pra filhos de Xangô, e não acredito que você seja um deles...
- Então é ainda mais complicado do que eu imaginava. Existem ritos que variam de acordo com a filiação?!
- Isso. Depois da limpeza que ela me fez, por exemplo, disse que eu tinha que ficar uma semana sem comer feijão, arroz, milho e canjica. E que eu deveria evitar lugares abertos ao meio-dia ou à meia-noite, talvez com filhos de Ogum fosse outra recomendação.
- Entendi. Eu ficaria uma vida toda sem comer feijão e milho, nem precisava de mãe de santo pra isso. Mas como era a limpeza?
- Era à noite, na praia, perto do mar,ela me mandou ficar de olhos fechados e passava alimentos em mim enquanto cantava. Ela cantava o tempo todo, coisas lindas, em yorubá... você escutou os cantos? São os cantos dos meus dois orixás.
- Escutei, mas por que ela ficou tão encantada com a combinação dos seus orixás?
- Ela disse que é uma combinação rara. Teve que consultar os búzios para confirmar e um tempo depois ela ainda perguntou o que Oxossi tava fazendo comigo, que esse não é meu orixá.
- Como assim?
- Eu sou filho de Xangô e Oxalá. E de Exu também, é o terceiro. E Oxossi ta comigo também, mas não é meu, ela viu nos búzios que Oxossi é coisa de família, alguém me deu, sabe? E Exu ela disse que é brabeira...
- Peraí, uma coisa de cada vez... Alguém te deu um orixá? E por que Exu é brabeira?
- Porque Exu é o mais indomável de todos, é o orixá da comunicação, é o começo e o fim de tudo. E é arteiro, sacaneia os outros pro seu próprio prazer, engana os outros.
- Sei. E quais são as características dos outros dois?
- Xangô é o orixá da justiça, da pedra e do trovão, é guerreiro, teve três esposas ao mesmo tempo, é explosivo. E Oxalá é Deus, é o pai de toda criação.
- E Oxossi?
- Oxossi e Exu são irmãos, mas eu não sou filho de Oxossi, só estou com ele porque me deram.
- Ainda não estou convencida de que você não tenha roubado esse Oxossi de alguém. Mas então, resumidamente você é estressado, mulherengo e sacaneia os outros. E precisou uma mãe de santo na Bahia pra concluir.
-Tchau.
-Tchau nada que agora eu quero saber de quem sou filha.
- Você deve ser filha de Nanã, que é avózinha que nem você, nisso você combina bem com ela, duas avozinhas.
- Há há.
- Ela é o orixá mais velho do mundo e foi amaldiçoada por Oxalá depois que rejeitou o filho que tiveram juntos.
- Credo! Não, não quero ser filha de Nanã, até porque a gente é filho de orixá que tem as mesmas características, né?
- É. Talvez você seja Iemanjá. Foi mulher de Oxalá também. E é muito poderosa. Ou Oxumaré, que é confusa pacas, metade do ano é mulher, metade é homem, ele que faz a ponte entre Xangô e Oxum. Talvez você tenha alguma coisa de Oxum, Oxum é tão bonita...
- Humm Oxumaré tá fora que eu não sou tão confusa assim e tenho certeza de que sou mulher o ano todo. O que mais Oxum tem?
- Eu já vi uma Oxum dançar, é muito bonito, escorrem lágrimas dos olhos dela. Durante um tempo eu achei que pudesse ser de Oxum também, porque ela é muito doce.
- Eu também sou doce, acho que estou gostando de Oxum.
- Mas ela é meio escrota também, era a preferida de Xangô e sacaneou Obá.
- Obá é quem mesmo?
- Era uma das esposas de Xangô, que caiu na conversa da Oxum e cortou a própria orelha, botou na sopa de Xangô porque a Oxum disse que assim ele iria se apaixonar mais por ela. Só que ele ficou p da vida e a Oba disse que tinha seguido os conselhos de Oxum.
- Putz, coitada... mas também, com tanta concorrência, né?
- E Oxum ainda tirou o turbante da cabeça só pra mostrar as duas orelhas lá, e ainda riu. Eu acho que no fundo eram todos meio sacanas, sabe? Tipo Macunaíma. Tem Iansã, talvez ela se pareça mais, deixa eu ver...
- Já sei, ela também era mulher de Xangô.
- Sim.
- Mas não existiam mais orixás homens? Ou Xangô era irresistível?!
- Xangô era foda mesmo. Mas olha aqui o que dizem sobre Iansã: Os filhos de Iansã são pessoas propensas a dar grandes guinadas em suas próprias vidas, a qualquer momento, sem se importarem com ninguém. Não gostam de se prender a ninguém pois são livres como o vento Acho que você é mais parecida com Oxum, embora tenha um pouquinho de Iansã também.
- Eu acho que sou órfã. Pelo menos não sou filha de Ossanha.
- Você nem conhece Ossanha e ta implicando, por que essa birra agora?
- Sei lá, mas tem aquela música “Se é canto de Ossanha não vá que muito vai se arrepender”. Eu boto fé no Vinícius.
- A minha mãe de santo está vindo esse mês.
- Então ela vai poder resolver quem é meu orixá.
- Você acha que vou dividir minha mãe de santo com alguém?
- E por que não iria? Não vou poder nem ver a mãe de santo?
- Não.
- Tudo bem, eu invento um orixá que esteja à minha altura. E nem adianta insistir que não te dou o meu, você que fique com esses seus três e o quarto roubado porque o meu ficará guardado a sete chaves.
- Durante um tempo eu achei que podia ser Oxossi também.
- São muitas opções, é bem confuso isso, não? E se você mostrar meu perfil do orkut pra mãe de santo, vale? Já que você não pode dividir...
- Mas sou Xangô mesmo!
- Alô, eu to falando com você!
- É que Oxossi gosta muito de mulheres doces, e como ele foi casado com Oxum eu achei que poderia se-lo também. Oxum é a coisa mais doce do mundo.
- Tchau.
- Mas que explosivinha. Oxum não faria isso. Iansã faria. Iemanjá talvez.
- Sou órfã, pronto. E além do mais, eu preferiria ser filha de 68, ou filha de alguma revolução. Combina mais comigo. A sua mãe de santo me odiaria, certamente.
- É, acho que vocês não se dariam bem mesmo, ela ia ficar magoada quando soubesse que você confia mais no Vinícius do que nela.
- E você não?!
- Eu falei com ela esses dias, eu queria roubar uma mulher. Acabei não pedindo nada e a mulher me ligou todos os dias da semana. Eu liguei pra ela depois, pra mainha, e contei tudo, ela disse que tinha colocado um melzinho pra mim.
- E não sobrou nada desse mel aí?
- Querida, nossos orixás não são os mesmos, o mel não funciona pra todos, é como aquela história do quiabo.
- Ah é... Bom, ela envenenaria o mel de qualquer jeito. Ou haveria um revertério e o efeito seria tão estranho que me faria voltar pra você.
- Você acha que a minha mãe de santo faria isso?!
- Eu espero que não, mas por via das dúvidas é melhor não arriscar.

- Mas que desprezo é esse agora?!
- Beibe, eu aconselhei Obá a cortar a orelha por sua causa, isso parece mais tragédia grega que mitologia de Candomblé, não acha? E além do mais você me amaldiçoou por causa de um filho rejeitado. Fora todo o resto que você não deve ainda saber. E você ainda quer que eu fique com você mais uma encarnação?! Não acha que já tivemos emoções suficientes?
- É, pode ser... talvez seja melhor mesmo você ficar longe de mim.
- E da sua mãe de santo também. E é melhor irmos dormir também.
- Com certeza.
- Boa noite.
- Boa noite.

quinta-feira, setembro 25, 2008

Chez moi

As coisas lá dentro estão dispostas de forma cuidadosa: livros, filmes, discos, revistas e objetos são enfileirados de acordo com a minha lógica que não explico.

Charles Aznavour convive pacificamente entre Carlos Gardel e The Cardigans da mesma forma que Ariano Suassuna nunca briga com Marguerite Duras. Um Woodstock encardido está bem acomodado entre os livros sobre música e a parede. Uma garrafa vazia de coca-cola parece confortável entre uma caixa de alumínio cheia de velhos Vhs e uma quase ridícula sessão de livros de quadrinhos, que devem ser seis no máximo. Santo Antônio ampara os dvds, e deve estar muito distraído tentando entender o que Kill Bill faz ao lado de Chorus Line. Uma cestinha de palha esmaga revistas de moda que nunca vou abrir de novo. Uma vaquinha engraçada resolveu ficar em cima do livro de receitas de comida Indiana. Acontece sempre um deslizamento nas pequenas montanhas de bolachas de apoiar copos (todas emprestadas de bares), que são refeitas em lugares diferentes a cada nova construção: na escrivaninha, em cima do som ou na mesinha de cabeceira. Duas caixas de chapéus guardam fotos.Uma lata de café que não guarda nada apóia livros velhos que nunca li e certamente nunca vou ler, e que estão possivelmente comidos por traças, mas que ficaram muito bem perto de uma outra cesta de palha numa estante alta. No pote de lápis e canetas duas multas de trânsito aguardam para serem recorridas. Um peso de um quilo que não levanto mais fica ao lado de uma vela de cheiro que acabou, mas continuam morando atrás da caixa de som. Uma saia cinza de pregas que não me cabe está sobre a cadeira há meses junto com uma bandana que usei pra ir à praia. Um mini chapéu de Veneza sumiu faz algum tempo, ele morava pendurado na quina de um livro do Basquiat. Uma caixa velha de charutos fica perto da pequena e acidental coleção de livros sobre pintores da Taschen, que por sua vez fica sob um copo de vidro Campbells. Um ímã vermelho ficou meio grudado bem sobre a minha cabeça numa foto em que visto saia estampada e danço. Um despertador cujo fundo é povoado de fotos de misses e que não funciona fica sobre os livros de moda, que por sua vez adotaram um filho único de ícones de fotografia. Um postal de uma tapeçaria medieval está a apenas outros dois de um japonês contemporâneo. Incensos estão afogados entre os lápis de cor que nunca vão acabar. A trinca de livros de amigos parece fazer algum sentido, porque são poetas conversando empurrados por um bonequinho que lembra uma figura do Keith Haring, é pena que falte uma dedicatória. Um pendurador de coisas em formato de flor carrega um guarda-chuva, a bolsa de praia, a bolsa de dia e um par de sapatos que preciso trocar por outro igual mas que não esteja com a tira arrebentada. Os ímãs de palavrinhas formam as frases “tenho o coração doce e quente / pensa e fala urgente / está sempre melhor no sonho” e depois não rima mais nada. O tapete não combina com as almofadas em cima da cama. No cantinho perto da porta tem um desenho de mim mesma. Pendurado na porta um móbile que veio da África divide o espaço com um penduricalho que veio do Japão. Os álbuns de foto daqui a pouco não caberão mais. Debaixo de um ímã que reproduz um mini cartaz de Singin in the Rain, Mãe Valéria de Oxossi me promete a pessoa amada, mas já se vão quase três anos em vez de três dias. No cantinho entre a viga de madeira e as prateleiras dos cds, três fotos me lembram que já fui bailarina enquanto uma faixa de silicone de fisioterapia dentro de um saquinho me lembra que tenho uma série de alongamentos para fazer. Uma gravura de um beijo está pendurada sobre a cama. Um adesivo da Company não quer sair do vidro que dá pra varanda. O sapato que usei anteontem está do lado de fora do armário enquanto não encontro o pé esquerdo dele. A última gaveta do móvel quase não fecha de tanta folha. Um moletom cinza mora na cadeira da escrivaninha. Um livro grande e pesado serve de apoio para o notebook ficar mais alto. Uma miniatura de um personagem de South Park olha para um mini guarda de Londres e os dois não parecem se aborrecer. Uma coleção abandonada de caixas de fósforos fica ao lado de um compasso que não me serve mais. Amostras de cor de uma antiga cartela mostram como chantilly não é igual a bege, grudadas na parede em cima de uma foto onde nós sete sorrimos. Calvin faz uma cara de pânico no ímã que fica ao lado da imagem também imantada do Hitchcock e uma outra do cartaz de Laranja Mecânica, que nem sei se gosto (do filme). Um dicionário cuja capa está remendada com durex está ao lado do guia turístico do Brazil com Z. O carregador do celular está constantemente plugado na tomada ao lado da porta onde um benjamim dá espaço ao fio da bolsa quente elétrica. Uma flor artificial envolvida por tule ficou esquecida na prateleira de livros de design. Duas calculadoras estão sobre a escrivaninha, ao lado de dois sachets de chá que ganhei junto da promessa de serem bons para olheiras. Uma parte do jornal de ontem está sobre a lata de lixo. Canetas parecem dar cria em todos os cantos.

Quando tem festa em casa fecho as cortinas e deixo a porta trancada, as pessoas sempre confundem antipatia com timidez e não é qualquer um que vai entender tanta coisa junta.




"Guardo sempre o traço
Jovem, nobre, bravo
D'um farejador amoroso
Pra quem o longe é sempre perto
Que nunca esquecerei "
Waly Salomão

terça-feira, setembro 16, 2008

The "Vizinho Issue" - parte I

A carta é formal, o tom é polido. O problema acontece quando preciso sutilmente dizer que o vizinho de quem reclamo é um imbecil. São muitas as perguntas que envolvem o vizinho e o fato dele ter desligado o interfone na minha cara quando eu pedi “por gentileza será que você podia estacion...” CLACK do interfone alto ali do sétimo andar.

1) É possível xingar alguém elegantemente?

2) É válido formalizar uma reclamação para o síndico porque o vizinho estaciona seu carro ocupando duas vagas (sendo uma delas a que você quer estacionar)?

3) Custa o vizinho estacionar dentro dos limites?

4) Alguém reclamaria de um carro mal posicionado se estivesse chegando ao prédio de bicicleta ou a pé?

5) O incômodo só incomoda mesmo quando você e seu umbigo são atingidos diretamente?

6) É por isso que o país não vai pra frente?

7) Desde quando o vizinho virou alguém que me deixa extremamente irritada?

8) A fúria que o vizinho me provoca, seria ela uma tentativa de descontar em algo palpável uma mágoa mais abstrata?

9) Estaria eu transferindo para o vizinho frustrações e questões psicológicas mais graves?

10) O fato de não concluir a carta para o síndico tem a ver com o fato de não ter concluído muitas coisas na vida?

11) E os porteiros, por que eles não ajeitam a porra do carro?

12) E Freud, explica?

sexta-feira, setembro 05, 2008

If you're feeling sinister*

(ou "I don't see what anyone can see in anyone else but you")

Faz algumas semanas já que acho que estou comendo chocolates mofados, não é uma tentativa de plágio, é só que eles estão com gosto amanteigado demais e a aparência mudou, antes pareciam conchas lustrosas e de repente, parece, ficaram foscas, ninguém sabe me dizer, eu continuo comendo e até agora não morri e nem fiquei verde, por isso sigo devorando a caixa: foi a notícia que dei a eles. Mas o que eu ia mesmo contar era a nossa história. No primeiro parágrafo eu ia dizer como nos conhecemos e, com alguma pretensão, dizer que nosso primeiro beijo foi, na verdade, o encontro das nossas salivas alternadas no gargalo de uma cerveja e que todo o nosso rumo estava destinado a esse eterno desencontro. Mas reli, achei piegas e cafona e, pior!, achei que alguém já começou escrevendo uma história assim. E também a gente se desencontra tanto mesmo porque eu te inventei de um jeito que não tem jeito: a gente nunca vai ficar junto no final porque eu cismei que ia ser assim, não sei o que você pensa e é provável que eu nunca pergunte porque eu já tenho tanta certeza do meu pensamento que o seu poderia estragar tudo e aí, como seria? Eu teria que baixar a guarda e dar uma chance, me dar uma chance e isso não, não mesmo, fica você aí inventado e eu aqui fugindo e te fazendo voltar de vez em quando pra continuar te culpando... do que era mesmo?

Foi o que me perguntaram e eu não soube dizer, eu soube sim, mas só disse pra eles, que me faziam confortável o suficiente, entre um chope e outro, fui relembrando como quem não quer nada e quando vi tinha contado tudo o que aconteceu comigo enquanto nada acontecia com a gente e quando dei por mim estavam lá, todas as linhas, tudo o que te disse, tudo o que você me falou, e então tudo na mesa, a gente se engalfinhando entre copos e guardanapos e as pessoas ali como expectadores tentando des-inventar todo o meu roteiro e querendo construir alguma coisa mais original, menos autoritária onde você pudesse (e quisesse) mudar as regras. Eles não procuravam um final feliz, não necessariamente, eles queriam é que eu deixasse pra lá toda essa mania de fazer de você imutável e insensível, só que no fundo eu fazia, ou pensava que fazia, e quando eu quase me convencia de que você era mesmo, como?, possivelmente diferente do quadro que pintei, por que não?, pedia outro bolinho de aipim, mudava de assunto, lembra de quando vimos aquele filme?, eu perguntava a eles, nos deixando de lado em reticências, que era a minha forma de ponto final quando dizia o seu nome e assim ficávamos (sempre) pra depois porque qualquer coisa era melhor que ter de te enfrentar e qualquer outro enfrentamento era mais seguro que confirmar que eu caibo direitinho no seu abraço. Eles me acatavam ainda com aquele resto de conversa entre os dentes, uma frase na metade em que diriam pra eu não ter medo, mas eu tinha, e com eles não tinha problema de assumir toda essa resistência. No caminho de volta colocava uma música que dizia que I'm in love with how you feel, os dois, como eles podiam ser tão absolutos e seguros? Eu poderia por horas esquadrinhar tudo o que eu não ouso pensar de você. E como nós três ficávamos confortáveis em nossos devaneios conjuntos, como somos aconchegantes, ia dando uma alegria no final, curava distensão e dor de cotovelo, nem precisávamos de relaxante muscular para dormir depois.



* Belle and Sebastian

:: Para a Carol e o Marcelo.

segunda-feira, setembro 01, 2008

Touched for the very first time

Parte da madrugada foi numa conversa insana com mais 5 pessoas que, como eu, xingavam em tempo integral o esquema de compra de ingressos para o show da Madonna. Numa tentativa de nos mantermos acordadas e alertas para qualquer sinal de que o site avançasse, elegemos Like a Prayer nosso mantra, nos comparamos às pessoas que, pré-internet, ficavam horas em cadeiras de praia na imensas filas (sorte nossa não aparecer no RJTV com olheiras e bafo dizendo "estamos aqui há dois dias"), e nos perguntamos por que será que o Rodrigo Santoro está tão ofegante em Os Desafinados (que, by the way, des-recomendo ferrenhamente).

No México, os bilhetes se esgotaram em oito horas. No Canadá, em 9 minutos (apesar de achar que isso é humana e computador-mente impossível). A possibilidade de não conseguir comprar um ingresso me deixou histérica e descabelada e já de manhã, num momento de completa desolação, concluí que não havia motivo para pânico pois os ingressos para o show no Rio jamais acabariam visto que ninguém conseguiria comprar pelo site ou pelo telefone e, de acordo com o Globo online, só havia cerca de 300 pessoas na fila do Maracnã para comprar os 75 mil tickets disponíveis.

Entoando um mantra na cabeça, não desisti nunca e quase chorei quando recebi por email a confirmação da compra do meu ingresso. Agora é torcer pra que a entrega funcione, porque até isso me pareceu complexo.

Enquanto a adrenalina não baixa e não volto a dormir, concluo mais uma vez o que as 5 pessoas já sabem: comprar ingressos para show da Madonna é tão tenso quanto o primeiro beijo, só que com muito mais erro de servidor.




:: I'm down on my knees, I wanna take you there!

domingo, agosto 24, 2008

Almoço de domingo

Amontoados na varanda estreita, percebemos que há algo errado com as coberturas do prédio ao lado: as escadas que ligam o primeiro piso à varanda descampada não têm qualquer tipo de proteção, de forma que, em caso de chuva, o primeiro andar deve ficar alagado. Há também uma varanda bastante esquisita com piso vazado, ou será que ali devem ficar os motores de ar-condicionado?

Esquisito também é o terceiro andar de um outro edifício onde se vê, além de um adesivo com número de político no vidro, uma árvore de natal que, não sabemos, ainda ou está montada? Alguém arrisca um palpite de que o dono do apartamento está morto desde dezembro ou que então alguém faleceu no dia de Noel e a árvore virou uma espécie de quarto do defunto em que ninguém consegue entrar. Os outros palpites provocam risada.

Uma prima nos presenteia com fotos que ela tirou num almoço ocorrido semanas antes. A mais importante é a que reúne todos os primos, uns esmagados, uns por cima dos outros, e que é uma tradição antiga dos tempos em que se conseguia enquadrar todo mundo junto numa 10 X 15. Não só ficamos grandes, mas ficamos muitos também. Uns tiveram filhos, outros casaram e de repente viramos um grupo de primos que precisa de uma panorâmica para nos capturar.

Não por acaso, nos espalhamos por sofás, poltronas, braços de cadeiras e chão e eventualmente nos enfurnamos no quarto de alguém e fazemos interrogatórios uns aos outros enquanto uma das primas loiras chama o pai, carinhosamente, de Obeso. Descobrimos que a tartaruga da irmã, a quem ela chama Stupid, come prancha de surfe e fios elétricos. Alguém sugere que ela está com verme, alguém sugere que ela seja alimentada adequadamente, alguém sugere que ela vá ao Lâmina fazer exame de sangue. Lembramos de quando um dos primos, que agora é ex-veterinário, cuidou de um passarinho que, desgovernado, entrara janela adentro. A ave não durou muito e até hoje especulamos o quanto a morte do bichinho influenciou sua decisão de mudar de carreira.

Um outro primo que ficou tão grande que escondia papéis de bombons no alto das portas (“sabe quando você vai comendo bombons pelo corredor e coloca os papéis na quinas do alto das portas?”) diz aos pais que a lei seca acabou, e eles acreditam. É o mesmo primo que dá um susto em todo mundo quando aparece fugindo de tiro no noticiário e também o escolhido para ficar na fila do ingresso do show da Madonna, afinal estagiário deve cumprir esse tipo de tarefa.

Cantamos “Parabéns pra você” e “Com quem será?” no almoço de noivado e fazemos maracutaia no amigo-oculto de fim de ano.

Achamos graça quando o primo atrasado consegue ser o último a chegar no almoço que acontece em sua própria casa. Fazemos piada com o primo que já é pai de três porque achamos que ele já pertence à categoria tio. Caímos na pele da tia que resolveu fazer aula de teatro e não economizamos gargalhadas quando ela nos convida para sua apresentação de fim de ano.

Mas engraçado mesmo é quando, num momento de (milagroso) silêncio, escutamos a prima mais velha dizer à mais nova que, por ano, morrem mais pessoas de ataque de hipopótamos que de leão. Nos entreolhamos assustados, imaginamos que exista um contexto para a frase mas pensando bem, em se tratando de nós, nem precisaria. Sabe quando você tem uma família grande e hilária que parece nonsense?...





obs. O Meu paletó virou estopa ressuscitou por tempo indeterminado.

quarta-feira, agosto 20, 2008

Signo: leão. Ascendente: não sei.

Certo como dois e dois, aos vinte e cinco anos eu seria uma pessoa bem resolvida, segura e determinada que saberia diferenciar esmalte renda de misturinha branca. Tantos enganos, mais ou menos importantes que esse, continuaram aqui quando acordei na minha primeira manhã completando os tais. Os vinte e cinco chegaram sem que eu tivesse resolvido qual era meu livro preferido, qual meu filme de cabeceira ou quem eu levaria para uma ilha deserta. Mantive, porém, uma esperança moura de acordar mais velha e mais sabida até o último minuto da véspera do meu aniversário, e essa era uma característica que eu não queria perder. Quando chegassem meus vinte e cinco eu queria continuar otimista. Às vésperas dos vinte e seis reconheço que otimismo nada tem a ver com ilusões bobas ou com os desejos que os outros nos desejam e então, perto da nova idade, em vez de querer emprego-amor-saúde (e coragem e sonhos e flores, como desejam os mais poéticos), resolvi querer algumas coisinhas mais simples, portanto mais possíveis.

Quero, por exemplo, aprender onde se usa mau com “u” e mal com “l”. Quero poder entrar numa loja de travesseiros e responder, sem pestanejar, que prefiro travesseiros baixos não deformáveis, que detesto a tecnologia da Nasa aplicada neles e que não confio em penas de ganso. Quero conseguir ler pelo menos um caderno de algum jornal sem morrer de sono, e sem ser o de moda. Quero achar legal gente que come alimentos vivos e que estuda Cabala. Quero parar de arranhar o carro na pilastra da garagem e acertar qual o ônibus volta pra casa sem precisar andar metade do bairro. Quero visitar todos os amigos que moram fora e conhecer o Peru. Quero ter alguma opinião sobre política. Aos vinte e seis eu espero que meu astigmatismo pare de crescer, que os preços dos shows parem de aumentar e quero, muito, parar de comprar revistas. Espero também que virar o lado do colchão seja o suficiente, que eu não desmaie no show da Madonna (ou na fila para o ingresso do show da Madonna), que eu ainda veja muitos filmes que poderiam ser os que eu queria ter criado, que a Amy Winehouse não morra e continue fazendo músicas maravilhosas. Aos vinte e seis, o que eu queria mesmo era poder voltar pros 25 para não estar, então, mais perto dos 30 que dos vinte, ou pelo menos queria ficar no meio do caminho, ganhar tempo pra solucionar algumas coisas, preparar algumas respostas de forma que algumas pessoas entendessem melhor quando, finalmente aos 26, eu dissesse simplesmente: não sei.

Certo como dois e dois, amanhã quando eu acordar terei vinte e seis anos e estarei ridiculamente igual a quando eu tinha vinte e cinco. Vou levantar muito depois que tocar o despertador, tomar o mesmo leite no café da manhã, passar protetor solar mesmo dentro de casa e ficar sentada ao alcance do telefone, aguardando os desejos de todos enquanto invento um jeito menos angustiante de não saber. E começar um novo livro, que com alguma sorte será o preferido.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Fiquei pensando antes de responder...

... porque de fato pouco mudou desde a última vez em que nos vimos. A cor do cabelo está um pouco diferente sim, me distraí na hora de comprar a tinta e ainda bem que gostei. Mantenho o mesmo formato, não engordei muito e nem emagreci demais. Ah claro, tenho ido mais à praia, é circunstancial, mas o sol pouco me afeta, de forma que continuo usando o bom e velho pó de arroz. Pensei em comprar uma bicicleta, mas creio que esse tipo de pensamento não realizado é descartado do quesito novidades, né? Foi o que eu imaginei, mas só pra você saber, se eles valessem, eu poderia te escrever por horas.

Começou com a bicicleta porque de repente me veio uma necessidade incontornável de querer estar ao ar livre. Acho que é inevitável depois de se trabalhar por meses dentro de escritório. E também algumas amigas passeiam por aí em suas magrelas, levando suas coisas dentro das cestinhas. É quase romântico pensar em se locomover por aqui montado em bicicleta. Por fim, acabei achando arriscado, eu sou tão desligada que poderia ser atropelada facilmente e aí sim eu teria novidades emocionantes, talvez trágicas, para contar. Então eu optei por teatro, que era mais estável e seguro que a primeira idéia, não era bem ao ar livre, mas era uma chance de desabafar sem precisar falar nada. O que mais me atraiu nesse plano era a possibilidade de aprender a chorar. E de aprender a parar de chorar, principalmente. Mas e o que eu ia fazer na hora em que tivesse que dizer alguma coisa na frente de outros alunos? É esse o problema. Eu sempre acho que as pessoas da turma de teatro vão ser aquelas que usam calças molinhas, que são anti-emails e que, claro, andam por aí de bicicletas. E pior: não seguram o guidon quando em linha reta. Sim, desisti do teatro, até porque cada vez que pensava nisso me dava um ataque de timidez que ficava com vergonha até de ligar pra pedir informações.

Continuo na aula de inglês, agora faço aula tripla, a conversação flui melhor. Desde a primeira aula abolimos alguns temas como Olimpíadas, religião, futebol, política. Uma das pessoas pediu também para não falarmos muito sobre animais de estimação pois ela acabara de perder seu cão adorado. A segunda pessoa mostrou-se um pouco radical quando falamos de cinema outro dia, quase me agrediu só porque eu disse que gostava de musicais. Ele defende filmes de autor quase como quem defenderia Jesus. É realmente impressionante. Desde esse dia passamos a evitar também esse tópico. Temos conversado muito sobre música e destinos de viagens, esses parecem ser de interesse comum e até agora têm funcionado. Mas convém não abusar. Tenho tentado inserir dança na conversa pra ver se o público aumenta, mas quando eles me pedem indicações de espetáculos para ver eu fico receosa. Como é que poderia recomendar espetáculos de dança contemporânea para eles, por exemplo? Até pouco tempo eles achavam que Nureyev era uma cidade russa. É cedo demais para inicia-los.

Continuo também dormindo pra caramba, ainda mais agora que não tenho que escutar despertador. Eu sei que é temporário, como a praia, então faço o melhor dueto: tiro cochilos na areia, sob o guarda-sol, quando começa a esfriar um pouquinho. Ainda insisto, também, nos cds, compro cds a toda hora. As caixinhas, por sua vez, ainda insistem em se esborrachar no chão na primeira semana, acho que já faz parte do ritual. É isso o que tenho pra contar, acho que fico fazendo e desfazendo planos para ter assunto, mas no fundo não tenho tanto assim. Prefiro sempre responder que ta tudo bem, tudo mais ou menos igual e emendar, exclamando, você é que deve ter uma porção de histórias bacanas pra dividir! Fico com vergonha de falar sobre o musical infantil que me fez chorar. E adio a hora, enquanto não tomo coragem, de te dizer a novidade mais nova e óbvia, que já faz uns dias: você virou assunto na terapia.


:: Nina Simone

quarta-feira, julho 30, 2008

Meus suicídios (em 3 atos)

I.

Eu me suicido toda vez que uso arco. É burro esse meu suicídio. É uma espécie de insistência vaidosa. Começa naqueles dias em que o cabelo está tão disponível para arcos que caio mais uma vez na armadilha dolorosa que eles fazem e então coloco um na cabeça e já está próximo o abismo. Em poucas horas eu estou completamente possuída por uma vontade de saltar pro fundo e o fim do abismo, as têmporas latejando, a cabeça toda começa a doer e a pulsar e de repente não há mais luz ou barulho à minha volta, somente sinto uma dor sincopada que cresce e PÁ! me estatelo no chão. É tarde demais pra tirar o arco da cabeça e também tarde demais para jurar nunca mais comprimi-la com um deles: o dia já está mal-humorizado, eu já não penso em nada senão quebrar o acessório.

II.

Eu me suicido toda vez que como tangerina. É inevitável esse meu suicídio. É uma espécie de rotina necessária. Começa quando entro na cozinha e o ar está impregnado pelo cheiro laranja da tangerina e então, segurando-a com a mão direita, cravo o dedão esquerdo na casca e divido a fruta em duas partes. A partir daí a corda está pendurada: o cão ao lado começa a subir pelas minhas pernas, os gomos se enfileiram no prato para serem descascados, arranco os fiapos um a um até que cada um fique o mais limpo possível para só então degusta-los. Mas aí o cão já está latindo, implorando por seus pedaço, me olhando com cara de desespero e fazendo todo o barulho que consegue, eu como os gomos afoita sem quase sentir o suco, encho o cachorro com um ou dois que nunca são suficientes, e no fim eu também não me satisfaço, com tanta inveja alheia e de repente, pronto: o prato está vazio, a casca está de lado e o nó já está sufocando meu pescoço. É muito cedo pra tentar de novo e além disso o cão está sempre aqui a pedir mais.

III.

Eu me suicido toda vez que tento te ter. É reincidente o meu caso e eu me suicido com uma persistência espantosa. É deprimente, repetitivo e ultimamente tenho receado ser um pouco obsessivo também, e é como se o meu suicídio estivesse condicionado à sua mera aparição. Eu carrego as armas quando você me enlaça para o cumprimento e é quando seu rosto toca o meu que descarrego a primeira bala, a que suspende a respiração acertando um pulmão. Eu atiro nos meus pés quando você me tira pra dançar e dilacerados eles tentam seguir o ritmo da música e se esbarram nervosos contra os seus. Eu acerto minhas mãos quando você me abraça e me diz coisas lindas e não consigo nunca acariciar seus cabelos em retribuição aos elogios que você sussurra, então eu atiro no meu peito e começo a sentir tanto frio, tanto frio e vou chegando mais perto, já na ponta dos pés machucados pra alcançar os teus lábios e BANG! acerto a cabeça quando você se desvencilha do meu beijo e resolve ir embora sem porquê. Eu caio ensangüentada no chão quando te vejo partir depois de ter me conquistado de novo e não consigo atirar em você porque uso as últimas balas do revólver contra os meus olhos, pra não te ver com ela, pra não te ver com outra. Eu me suicido toda vez que você está por perto, te odeio no dia seguinte e te amaldiçôo até te encontrar de novo, me suicidar outra vez. Não dói, fazer o quê?



domingo, julho 13, 2008

Como se fora brincadeira de roda

Almoçando com a minha irmã, ela notou que na mesa ao lado uma criança em seus 5 ou 6 anos assistia, enfeitiçada, a um filme num aparelho portátil de dvd. A criança, loira, arco de lacinho no cabelo, estava sentada à mesa com seus pais, que pareciam muito à vontade com o método que descobriram para fazer comportar-se sua filha. A menina era uma estátua resignada que sequer piscava, tão absorvida que estava em seu mundo particular com seus fones de ouvido.

Imediatamente, lembrei-me de um livro que acabara de ler e que, tal qual o filme da criança, me absorveu durante toda uma tarde. O Verão do Chibo, escrito a quatro mãos pela Vanessa Bárbara e pelo Emilio Fraia. Os dois nasceram no mesmo ano que eu. O Verão do Chibo é uma novela narrada por um garoto que é o caçula da turma com quem passa as férias de verão. Embrenhado num milharal, às voltas com colônias de formigas e espionagens secretas de agentes da Rainha da Bulgária, os garotos fazem de seu QG uma casa na árvore e de suas armas balas de goma. Em meio a fantasias e descobertas, as crianças do livro brincam de circo, se sujam na terra e desafiam o mundo tirando casquinhas de machucados antes da hora.

Lendo entrevistas dos jovens autores descobri que eles fazem menção a diversas brincadeiras e jogos que eu e minha irmã também gostávamos: elefantinho colorido, amarelinha, vaca-amarela, esconde-esconde e tantas mais, algumas mais especiais que as outras, algumas que de fato só recordo o nome e cujas regras foram totalmente armazenadas numa parte da cabeça à qual não tenho senha para entrar.

Parte dos motivos pelos quais adorei o livro são estes, estas memórias de infância que todos temos e que cada vez mais visitamos menos. Através do verão dos outros lembrei-me de tantos verões brincando nos gramados das casas na serra e até na praia perto de casa mesmo. Escalar árvores como se fossem montanhas altíssimas, construir castelos onde princesas à prova d’água poderiam morar, rodar até ficar tonta e cair na grama sem machucar, morrer de medo de ser encontrado no esconde-esconde, deixar de ser café com leite, ficar de altos, comer frutas do pé, tomar banho de chuva com direito a xampu. Correr era fácil. Sujar-se era permitido. E ser leve era natural.

É dessa leveza que sinto falta, dos espaços que nos pareciam enormes, das pessoas que nos pareciam gigantes, da luminosidade que nos parecia infinita. Talvez seja saudosismo, ou nostalgia. Desconfio de que a minha geração teve a sorte de ter uma infância pré-tecnologia, tivemos a sorte de conhecer lama, rua de terra, guerra de travesseiro, bonecos e carrinho de rolimã e de poder incluir outras crianças nas brincadeiras. Pudemos extrapolar todos os níveis de nossa imaginação, tínhamos que construir nossos refúgios e não comprá-los prontos em formato digital. É quando fico com pena da criança de lacinho no cabelo, que escreverá sobre o verão em que conseguiu baixar todos os filmes e jogos no seu computador sem a ajuda de ninguém. Com alguma sorte os filmes serão de aventura, mas que jamais serão suas de verdade.

domingo, julho 06, 2008

My Lasanha de Palmito Nights

Quantas panelas existem em Paraty? – foi a pergunta que nos fizemos enquanto esperávamos a sobremesa que já demorava mais de 40 minutos para chegar à mesa. Não foi só a sobremesa. A média de espera de qualquer prato na maioria dos restaurantes é de 40 minutos, o que nos fez questionar a existência de fogões e panelas nas cozinhas de cada estabelecimento. A demora em conseguirmos a conta também foi um mistério. O refrigerante, a entrada e os peixes, por que tudo demora tanto? Será que os peixes são pescados no momento em que se faz um pedido aos atendentes?

Para comer em Paraty são necessários bons amigos, paciência, bom humor e eventualmente uma (ou mais) rodada de pôquer. Essa talvez seja a primeira das dicas de nosso guia especial de sobrevivência na Flip, que foi esboçado entre um bobó e outro. Que não se deve olhar pra frente ao caminhar pelas ruas do Centro Histórico, isso todo mundo sabe. O que nós revelamos, porém, nem o Lonely Planet desconfia.

Os restaurantes, em sua maioria, não fazem reservas e não organizam lista de espera com o incompreensível argumento de que a mesma causaria confusão. A aventura já começa aí: conseguir uma mesa requer astúcia e vigilância. Ou um bom guardador, foi o que descobrimos no restaurante tailandês. Uma vez sentados, entre tosses e espirros (causados pelos fortes aromas que impossibilitavam qualquer frase longa sem obstáculos), observamos a poucas mesas de distância um homem que ocupava 6 lugares. Ele estava sozinho, falava ao celular e não consumia sequer um copo d’água. Pouco depois, cerca de 5 pessoas chegaram e o homem calma, e quem sabe famintamente?, se foi. O mesmo homem foi visto no dia seguinte guardando um lugar na fila de autógrafos para seus contratantes. Uma bela sacada.

Idéia genial, também, é perguntar se o prato que você escolheu está realmente disponível, literal e metaforicamente falando. Pode acontecer de você descobrir, depois de cinqüenta minutos de espera, que o seu pedido não chegou porque faltou arroz na casa. Ou água na cozinha e por isso as louças não puderam ser lavadas ainda. Não é piada. Depois de ter perguntado três vezes sobre o meu picadinho que não chegava nunca fui informada de que não havia picadinho na casa, o famoso tem...mas acabou!. É nesse momento, então, que se tem a maior revelação: Paraty fica mesmo é na Bahia.

No caso da água que acaba, carregue seus talheres, copos e pratos descartáveis, ou tenha sempre um balde água para contribuir. O mesmo balde pode servir para o banho, visto que 90% dos chuveiros das pousadas e hotéis da região são elétricos daqueles de água ralinha, o que faz com que nós possuidores de cabelos cacheados demoremos o triplo de tempo na função. Baterias para secadores de cabelos também são boas opções para não causar curto-circuitos indesejáveis. Mas pra não haver perigo mesmo, duas soluções práticas: escova progressiva antes da viagem (daquelas em que a pessoa é proibida de lavar os cabelos por três ou quatro dias) ou uma coleção de chapéus.

Tenha certeza de que pelo menos um dos chapéus possui abas que encobrirão parcialmente seu rosto, isso evita olhares reprovadores de vizinhos de cadeiras quando você acordar de um cochilo no meio de uma palestra arrastada, sem graça e complicada, elas existem, felizmente não tanto quanto as portas coloridas que enfeitam a cidade. Os chapéus também servirão para você tentar enterrar-se nele quando as declamações constrabgedoras de poesia começarem, essa dica é quente: fique longe do sarau da casa do príncipe. Fique longe também da praça decorada por artesãos e crianças locais, isso pode ser ainda mais assustador que as pessos amalucadas fazendo performances de versos. Se for inevitável passar pela praça e se o tema for "personagens da infantil" por favor, faça de tudo para não se deparar com o poeta Gentileza. Sim, ele está lá, deve ter algo a ver com o não-fazer lista de espera, vai entender...

Tenha a certeza também de que todo e qualquer mau humor, fome, susto ou leitura dramática (no pior sentido) será recompensado por coisas muito simples: você terá tempo para papear com um bocado de gente bacana, as ruas tem nomes como "Rua do Fogo" ou "Rua do Comércio", o que a todo momento nos remete aos tempos de império, os passeios de charrete sobrevivem por lá, pintores de paisagens ingênuas montam seus cavaletes nos caminhos de pedras antigas, cachorros dormem no meio de filas para palestras sem se incomodar. O melhor, porém, é que em Paraty, algumas flores crescem sobre os telhados das antigas casas.

sexta-feira, junho 27, 2008

Letras

-Às vezes eu fico pensando como seria se o mundo tivesse seguido sem a invenção do Youtube.
-E do Google? Já parou pra pensar como seria o mundo sem Google?
-Pois é. Fico aterrorizada, só de pensar. Youtube, Google, Wikipedia...
-Imagina só. Antes do Google tudo fica meio embaçado pra mim. E eu amo todos da série: Google maps, Scholar Google...
-Você acha que no Scholar Google é possível encontrar as últimas mudanças sofridas pela língua portuguesa?
-Hummm não sei... só tentando.
-Eu fico um pouco confusa com essa história. A gente, que saiu da escola há muito tempo, como faz? Eu vejo a minha mãe, até hoje ela escreve “bôbo”, “lôbo”... As próximas seremos nós, escrevendo idéia com acento e vêem e vôo. Muito complexo isso.
-Mas...
-E não tem como a gente saber, sabe? Porque se fosse antigamente todo domingo ia vir um fascículo no Globo com as novas regras gramaticais, você ia juntando tudo e no final ganhava um lindo fichário pra colocar os fascículos. Mas não, os fascículos caíram em desuso!
-É, fascículos definitivamente são da era pré-Google.
-Tá vendo, a gente já começa a pensar o tempo em antes e depois de Google. E vendedor de Barsa?! Imagina se um dia você conta pros seus filhos que quando você era criança tinha uma coleção de enciclopédias E fascículos?!
-Hahahahahahaha ele vai precisar de um vídeo no youtube pra ilustrar!
-Vai, ele vai procurar na Wikipedia e vai ver fotos de Barsas e Britânias enfileiradas! Mas voltando às regras, devia ter alguma coisa desse tipo vendendo em bancas porque até as próximas edições de livros sobre gramática serem atualizados deve demorar um pouco, né?
-Deve demorar um pouco sim. E até o Word se atualizar vai demorar mais ainda.
-Mas você confia nas correções do Word?
-Nem um pouco. Outro dia eu escrevi “variadíssimas” e o Word dizia que estava errado. Por isso variadíssimas continuou.
-Mas por que você não procurou no dicionário?
-Porque o meu dicionário escreve “bôbo” e “lôbo”, que nem sua mãe.
-Depois de tantas mudanças, sinceramente, eu não confio nem no Pasquale.
-Não, não. No Pasquale eu super confio!
-Ainda? Mesmo depois dessa última leva de ajustes? Não sei não...
-Sim, porque a língua é viva e o Pasquale também. Além disso ele deve ter fontes de estudos mais confiáveis que o Google.
-Tudo volta pro Google, reparou? Mas mudando de assunto, consegui uma pousada pra Flip!
-Que maravilha! Machado de Assis esse ano! Pré-google total!
-Pois é. Inclusive vou dar uma olhada no Scholar Google pra ver se leio uns resumos da obra dele. Acredita que nunca li um livro dele? Não posso dar vexame, né?
-Como assim? Todo mundo leu pelo menos Dom Casmurro! Dom Casmurro era tipo... o Google nos tempos de escola, ninguém estava imune a ele!
-Eu sei, eu li esse, mas foi o que você disse, na época da escola, naquela idade qualquer livro que a escola mandasse ler a gente já achava chato na primeira página.
-Hummm verdade. A gente gostava de livros fora do sistema escolar, né? Nesse caso, dê um Scholar Google. Mas tente não entrar em discussões muito sérias sobre o Machado. E finja desmaio caso peçam sua opinião.
-Ok. Mais algum conselho?
-Conselho não. Tenho que terminar essa tese. Até agora desenvolvi bem, mas não consigo concluir, não sei concluir coisas, saca? Você sabe?
-Olha eu até acho que sei, a minha psicóloga certamente diria que não.
-Hahahahaha, a minha diria o mesmo. Mas e nos textos? Preciso terminar esse trabalho, tenho que entregar amanhã.
-Eu não sei, toda vez que tenho que escrever alguma coisa os finais ficam sempre meio escrotos.
-Escrotos?! Eu odeio essa palavra. Essa é uma que podia ser eliminada da nossa língua, ia ser um grande favor. As pessoas se lembrariam daqueles tempos em que se dizia ‘escroto’ e se via o mundo ser dominado pelo Google.
-Ahahahaha que exagero!
-Exagero nada! Primeiro foi Coca-cola, McDonalds e tal. Depois de um tempo veio Nokia e Oi, eu tinha certeza que o mundo seria domindao pela Nokia ou pela Oi!
- E pelo presidente dos Estados Unidos? Nunca achou que algum deles ia dominar o mundo? Ou de repente Hitler e tal...
- Nada, tudo fichinha. Seremos regidos pelo Google, pode confiar.
- Será?
- Melhor do que pelos vendedores de Barsa...

segunda-feira, junho 23, 2008

Antes

Parece brincadeira mas foi o que ela disse: sua cabeça está fora do seu centro de gravidade e por isso você está com dor e vai continuar sentindo. Ela não era minha médica nem nada, era alguém na sala de espera enquanto eu lia para o ortopedista o laudo da ressonância. Isso tudo antes d’eu voltar pra aula de ballet e me empolgar num salto (que o professor dizia que era geté e eu tinha certeza que era saut d’ange) e sair da aula chorando com uma coxa direita estirada ou hiper-estendida ou destendida, nunca entendi muito essas pequenas lesões. Isso antes das cinzas do Kurt Cobain serem roubadas da casa de Courtney Love (!) e antes também da minha irmã ter problemas no rim e eu leva-la à Santa Casa porque a médica substituta do médico tradicional estava dando uma prova lá, e lá não lembra em nada Grey’s Anatomy, mas parece muito alguma coisa que a gente se acostuma a ver em documentários e certamente que aquilo merecia um. Isso também antes de comprar o cd novo da Madonna e de achar que hip hop não é tão ruim assim e eu sei que só achei legal porque é a Madonna e comprei junto também um disco do The Smiths e isso tudo antes de tirar os chinelos e sair literalmente correndo atrás de um amigo que passava de skate pela orla num domingo em que eu não encontrei um outro amigo que marcou um encontro que não poderia ser desfeito ou adiado porque ele estava sem celular, e no meio da corrida o cara do skate se afastava e a minha irmã e minha prima que tinham ficado sentadas riam da minha cara e eu comecei a rir também e desisti. Isso foi depois que o barraqueiro de uma outra orla encontrou meu celular que eu tinha perdido e me devolveu com uma foto de suas partes íntimas e essa história é verídica e bizarra. Isso antes do mesmo telefone perdido, e então reencontrado, cair no chão e só funcionar no viva voz e eu não poder mais conversar com as pessoas, mas não tem importância. Isso tudo também foi antes dos comentários deste blogue virarem demonstrações explícitas de ciúmes de amigos que querem que eu escreva sobre eles, não é muita pressão? Isso foi antes de dirigir o carro da minha irmã, agora já curada dos problemas de rins, e questionar se o meu carro tem mesmo direção hidráulica e de repente a dor de ombro e pescoço tem a ver com o esforço pra fazer curvas, além da cabeça que está fora do centro bla bla bla e tudo isso foi antes de entrar na chapelaria e a senhora me atender e fazer meu cadastro e dizer que se lembrava de mim, que ela não tinha esquecido meus olhos grandes, que geralmente olhos grandes são feios mas os meus não eram. Ela disse isso antes de oferecer seus serviços de numeróloga e tudo isso é claro que aconteceu em Copacabana onde aparentemente eu sou um ímã. Todas essas coisas antes de uma amiga comprar uma máquina de Frozen Margaritas e antes também do postal da Bebel ter chegado aqui em casa com um carimbo que ainda soltava tinta mesmo depois de ter atravessado um oceano. Isso também antes de ir ao Saara e andar pelas ruazinhas antigas do Centro e encontrar um casal de amigos dentro de um vagão do metrô, depois que o priminho neném (pós-neném na verdade) passou horas se escondendo atrás da cortina e gargalhando cada vez que eu o encontrava de novo, depois também de querer comer pizza com irmã e vó no dia 12 e concluir que certamente o Zona Sul teria mesa vaga (e de concluir também que se não tivesse a gente teria que dar um toque nos casais porque comemorar dia dos namorados no Zona Sul é muito loser). Isso tudo antes de uma amiga de infância casar com sorriso que parecia rasgar seu rosto e eu chorar feito boba perto do altar, antes da festa cheia de flores tão coloridas que pareciam mentira, antes dela dançar a noite toda e começar essa vida a dois, antes de receber o convite pra festa de despedida de mais uma amiga que se vai... Tudo isso aconteceu antes d’eu ganhar um SEGUNDO Santo Antônio, é muita pressão, agora fico aqui, tentando colocar a cabeça de volta no eixo, a coxa de volta no lugar, tentando escrever sobre todos os amigos ciumentos e chantagistas e tentando, principalmente, fazer amizade com os dois Santos que esse inverno aqui no alto tá muito frio e eu quero alguém pra esquentar.


sexta-feira, junho 20, 2008

A história que eu não contei ao telefone

Depois de finalizar as artes, deixei as impressões no silk de sempre. Rose perguntou como estavam as coisas no trabalho, fazia um tempão que eu não aparecia por lá. Eu disse que tinha saído do trabalho e já esperava a pergunta fatídica: e está aonde agora? De férias, respondi. Ela perguntou se eu ia pra alguma outra marca, eu disse que por enquanto não e ela disse que eu devia ir pra uma determinada marca, que eles estão crescendo muito, que tiveram de mudar o escritório de lugar (São Cristóvão, provavelmente) porque estão contratando muita gente e que eu deveria ir pra lá porque afinal eu sou tão competente (palavra dela). Ela disse que me daria os contatos, eu agradeci e fingi achar ótima a idéia (às vezes é melhor achar ótimas as idéias que os outros têm pra gente do que explicar...).

No dia seguinte cruzei com ela, a Rose, que tomava café na padaria. Ela perguntou o que eu fazia tão cedo ali e eu disse que vinha da fisioterapia que era no prédio ao lado (e na mesma rua do silk). Ela perguntou se eu fazia o tratamento com “aqueles dois rapazes”, eu disse que não, ela perguntou o que eu tinha, eu disse coluna ruim e ela disse que fez um período de reabilitação com os tais dois rapazes que você sabe, né Julia, eu fico muito tempo fazendo as artes lá na loja no computador, eu desenho muito e tive L.E.R sabe? Doía do pulso ao cotovelo, menina, eu tive até cárie porque não conseguia escovar o dente de tanta dor no braço! Ela disse que me daria os contatos dos dois rapazes que eles eram muito bons, eu agradeci (algumas coisas é melhor não discutir pois a conversa pode se estender para além do desejado).

No terceiro dia fui buscar algumas das telas que estavam prontas e ela perguntou se eu tinha ido aos desfiles, eu disse que não, ela me chamou pra ver as fotos de uma marca para a qual ela tinha feito as estampas. Muito orgulhosa e sorridente ela me mostrou diversas imagens do tal desfile e também o release da marca.

No quarto dia, quando fui buscar o restante das telas, ela disse que eu estava bonita e eu disse que deviam ser os efeitos das férias e ela disse que precisava de férias também porque estava muito cansada e tinha que fazer uma cirurgia, que tinha feito uma ano passado e precisava fazer a segunda logo porque você sabe, né Julia? Mulher depois dos 40 tem que tirar o útero porque ele vira foco de infecções e doenças e câncer e além disso que já tenho dois filhos e não quero mais, o problema é que se eu sair daqui pra operar isso aqui pára, né Julia? O meu médico já falou que só me opera se eu ficar um mês em casa de repouso e como é que eu vou ficar um mês em casa de repouso? Só se eu alugar um apartamento aqui em cima no prédio, aí sim!

Lembrei de uma vez em que fui lá, há meses atrás, e a Rose estava com os cabelos penteados como nunca tinha visto. Eu fiz um elogio e ela disse que tinha ido lá naquele salão ali novo em Ipanema, o creme deles é ótimo, você devia ir lá porque olha, o meu cabelo é ruim, né Julia, o seu já é bom, se você usasse o creme deles ia ficar ainda melhor porque solta os cachos, sabe?

Minha mãe, irmã e tia gargalharam quando escutaram essas histórias, junto com as minhas próprias risadas. Minhas amigas fizeram uma cara de “que tipo de conversas são essas que você anda tendo?” e eu fiquei quieta o resto do tempo...

Ficamos horas no telefone hoje e acabei não contando nada disso pra ele. Me dei conta de como ele faz muito mais falta do que parece. Besteira não ter contado. Ele entenderia e eu riria tudo de novo!

sexta-feira, junho 13, 2008

Para o Bruno

Bruno sempre fica moreno no verão. No inverno também, que ele continua indo à praia com sua manta que roubou do avião fazendo as vezes de canga. O Bruno perto de mim fica ainda mais colorido com toda sua morenice fora de época e diz que eu pareço européia. Eu concordo e ele sorri. Seus olhos não ficam espremidos por causa de seus sorrisos, nunca entendi como ele consegue. Mas se eu fosse o Bruno também sorriria sem apertá-los. O verde dos olhos do Bruno não é encontrado numa cartela Pantone, nem a morenice dele, parece que ele escolheu a dedo cores que ninguém mais no mundo consegue. Bruno acharia graça se soubesse que acho que suas cores são especiais. Mas na verdade engraçado mesmo é ele que fala sobre uma música e a canta em seguida, não sem antes hesitar e dizer “não, não vou cantar, tá tá bem, vou cantar uma parte”. E canta.

Bruno faz um gesto com os braços quando canta, nem deve saber. É como se os afastasse um pouco dando espaço pro peito se encher. Seus olhos verdes olham pra cima quando canta e as sobrancelhas espessas ficam ligeiramente arqueadas. As mãos têm um trejeito também quando ele canta. E a voz fica um pouco mais grave, menos rouca, mais calma. Ou mais serena, sei lá. O resto do tempo quando ele não está cantando ele fala rápido e ansioso.

Bruno diz que eu falo pouco. Mas na verdade é ele quem fala muito. Ele fala muito tudo, ele fala muito “meu irmão”, “pô”, ele fala à beça, ele tem uma necessidade tamanha de falar e às vezes, quando ele se pega tagarelando diz: “eu falo muito, né?”. Eu sorrio e ele concorda. Ele fala com as mãos também e repete sempre alguns movimentos que são tão dele que qualquer outra pessoa que fizesse só me lembraria o Bruno, um movimento com as duas mãos que ele não deve ter reparado tanto quanto eu. Eu gosto de reconhecer o Bruno nesse gestual tão particular, como se além das cores ele tivesse também músculos e ligamentos especiais que dançassem nesse ritmo grave e meio rouco e ansioso da voz que ele tem. O Bruno não deve saber metade dessas coisas que eu sei que ele tem (talvez ele saiba de outra forma).

Bruno diz que ficamos amigos porque insistimos muito, ou cismamos, sei lá. O Bruno perto de mim fica ainda mais meu e eu perto dele fico sempre mais dele, como a gente era da gente quando se via todo dia. Esses detalhes todos do Bruno que eu sei me dão a nítida sensação de que existe um Bruno que só existe comigo e todas as coisas que ele sabe de mim deve fazer com que exista uma eu que só existe com ele. É por isso que até hoje o Bruno e eu sempre voltamos.

Bruno acharia graça se lesse tudo isso que estou escrevendo dele. Mas rir mesmo ele riria se eu dissesse que desde que Santo Antônio resolveu me boicotar que todo dia 12 de junho acordo e penso: hoje é aniversário do Bruno. Talvez até esmagasse um pouco os olhos.

domingo, junho 08, 2008

Strangeways, here we come *

Peguei tanta chuva que comprei uma toalha, pendurei as roupas num cabide e vesti pijama o resto do dia todo, resto do último dia de trabalho, isso antes de ter que me esconder no banheiro pra ler a carta que ela tinha deixado na minha agenda porque eu sabia que ia chorar e como é que essas coisas mexem tanto com a gente, né?, ela virou uma dessas pessoas doces que só de dizer bom dia já despeja um pouquinho de sol na gente e no outro dia já não ia ter mais ela lá, nem nos próximos, parece dramático contando assim, e deve ser mesmo, mais de um ano nessa rotina e de repente ficam os dias sem ela e sem tudo aquilo que eles tinham durante meses, os dias, quero dizer, e agora os dias são tão o oposto do que eram e ficar aqui é somente o que não era ficar lá e é bom mas toda essa liberdade apavora um pouco, todas essas portas que pode ser que se abram seriam ótimas opções se eu soubesse em que muros elas estão, que casas guardam e como fazer pra chegar perto delas.

É quando vem um nervosismo atrapalhado e uma ansiedade de decidir e resolver, não importa muito o quão definitivas sejam as resoluções,o que importa é te-las porque andar na claridade é sempre melhor que no escuro, mesmo que a luz venha de lanternas que se apagarão, por alguns momentos é preciso ter alguma certeza ou pelo menos achar que tenho uma certeza que me empurre, o excesso de dias sem despertador às vezes dá pânico, a liberdade de repente parece tão assustadora que só o que é preciso é ter pra onde ir, mesmo que depois eu tenha que me mudar e me despedir de novo. Me despedir de novo vai doer de novo. E se acontecer sempre? E se não acontecer mais?
...

No quarto dia achei melhor dar um tempo, abrir a cortina, dormir de novo, dar uma volta, visitar a irmã, ir à praia, mergulhar, ficar com medo das ondas de novo, sentar no banquinho da sorveteria, almoçar comida feita na hora, tirar o pó dos discos, telefonar para os amigos, sair sem carro e sem muita hora pra voltar, não pensar tanto afinal nas portas, preciso primeiro fechar bem as recentes ou pelo menos passar a chave delas adiante, entender o fim das coisas e aproveitar a felicidade de tê-lo providenciado por sobrevivência, por saber que preciso acabar mesmo com isso ou aquilo, mesmo que doa e mesmo que falte ainda o mapa pro próximo porto, um dia vou abri-las, as portas, depois das férias, depois...



* "They said there's too much caffeine in your blood stream and a lack of real spice in your life" - The Smiths

segunda-feira, maio 26, 2008

Biblioteca

- Mas é que livro tem que ter aquele apelo, sabe? Ele tem que parecer que está flutuando sobre os outros na prateleira da loja. Às vezes não adianta ser um Oscar Wilde, o livro tem que acenar pra você, entende?
- Flutuando na prateleira da loja??? O livro tem que te acenar?? Que papo é esse?
- É uma figura de linguagem, oras. Ele tem que ter alguma coisa que te chame, sei lá.
- Tipo uma capa bacana?
- Talvez. Mas não é só isso. Uma vez eu comprei um livro porque a capa dele era genial e o título tinha tudo a ver e foi péssimo. Não durou dois capítulos. Não era de capítulos na verdade, era de contos. Meio um Caio F wannabe, sabe?
- Humm sei, esses são os piores, esses cretinos pretensiosos.
- Esse certamente foi.
- E o que você fez? Você parou de ler no meio? Que parar livro no meio é pesado, né? Eu me sinto péssima. Acho que se o cara teve a coragem de escrever um livro ele devia ser lido até o fim.
- Mas era ruim, mal escrito, mal pensado, mal diagramado...
- Mal diagramado?!
- Ok, não era mal diagramado, mas era mal tudo o que você consegue pensar. Até o nome do autor se você parar pra pensar é péssimo.
- Ahahaha agora você está exagerando, a culpa nem é dele.
- Pode não ser, mas que pessoa com aquele nome tem coragem de vê-lo na capa de um livro? Livro é uma decisão séria, é que nem filho, é pra vida toda!
- Ahahaha você devia fazer teatro!
- E você devia fazer uma lista pra mim, com livros bacanas que você recomendaria. Livros assim que você levaria pra Penedo pra ler na rede, sabe?
- Humm sei. Clarice. Raduan. Camus. Adélia.
- É. Mas esses são os de sempre. Sinto falta de uma novidade, sabe? De um impacto.
- Entendo. De um novo amor, né? Literário, quero dizer. De arrebatamentos. Sabe o que resolvi fazer? Ler os livros das músicas.
- Como?
- É, os livros das músicas. Aquelas. Dentro da Noite Veloz, Na Cinza das Horas, Flores do Mal
- Olha! Que genial! E Paraísos Artificiais?
- Esse livro tá em que música?
- “Meu amor se você for embora, sabe lá o que será de mim...” À Francesa, da Marina!
- Humm. Desconfio.
- Do livro? Ou do Baudelaire?
- Da Marina. “Eu tô grávida de um beija-flor” e tal, ela não é confiável.
- E “o inverno no Leblon é quase glacial” é confiável??
- Mas essa não tem livro, não tem problema. O negócio é aquela que a Calcanhoto canta, os livros se encaixam tão bem na letra que a maioria das pessoas nem deve saber que são nomes de livros, devem achar super metafórico e abstrato e poético ainda ter o seu cheiro dentro da noite veloz.
- Ahahahah e na cinza das horas mais ainda!
- Ahahahaha mas olha, a gente precisa descobrir outros livros de músicas! O Chico deve ter livros em músicas. Zeca Baleiro também. O Caetano tem um disco inteiro chamado Livro. Tem que ter algum livro na música!
- Sabe quem deve ter? Legião Urbana!
- Éééé, sempre tinha um Godard no meio da história, Bauhaus, Mutantes, tal. Tem que ter livro.
- Tem aquele “quando se aprende a amar o mundo passa a ser seu”, sabe? Naquela música Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar.
- Isso não é livro.
- Claro que é. Dá um google nessa frase.
- Péraí... não. Não é livro.
- Mas é claro que é! De auto-ajuda! Posso vê-lo ao lado de “Quem ama não adoece”!
- Flutuando na prateleira?!
- Humm não sei... Mas olha, tem outro: “o sol nasce pra todos só não sabe quem não quer” de “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. E também “e hoje em dia como é que se diz eu te amo?” De "Vamos Fazer um Filme"!
- Ai meu deus. Daqui a pouco você vai dizer que “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã” é um livro de auto-ajuda também.
-E não é? Gente esse negócio vicia, as músicas deles são um celeiro de livros de auto-ajuda! Olha só: “com você por perto eu gostava mais de mim” ahahaha e não é que nessa tem? “estava lhe ensinando a ler On The Road, coisas desiguais”!
- Éééé! (...) Kerouac, é? Não sei não...
- Por que, não é confiável também?
- Tanto quanto o Engenheiros do Hawaii. Eles tem um livro numa música, Pergunte ao Pó. O nome da música é outro.
- Mas e então, ficamos na mesma, né?
- É. Esse aí que você comprou por causa da capa. Como foi? A compra, quero dizer.
- Ah foi um dia qualquer. Ele se destacou, não sei bem. Digo, ele acenou pra mim na prateleira.
- Mas você já foi querendo um desses bons? Quero dizer, você já foi comprar um livro epifânico?
- Sim, eu queria um desses.
- Entendi. Talvez a gente deva procurar qualquer coisa, uma frase, sei lá. E não uma epifania toda, sabe? Já experimentou ler o primeiro parágrafo dos livros?
- Não. Pode ser uma idéia.
- Melhor do que achar que algum está flutuando. É que nem conhecer pessoas. Aquela coisa de primeira impressão e tal. Como foi que você encontrou o Caio?
- Ele me encontrou. Numa epígrafe de um livro que eu ganhei. Foi muita sorte.
- Verdade. Como faz então?
- Acho que não faz. Continuamos ouvindo músicas, sei lá. Da última vez fiz uma enquete e acabei lendo um livro que tinha mudado a vida de duas pessoas. A minha continuou igual.
- Sabe que livro mudou minha vida?
- Sei. Mudou a minha também. Será que depois de um tempo eles mudam mais alguma coisa? Ou mudam de novo?
- Acho que não. Mas não custa tentar, né?
- É, não custa. Ainda mais que eles continuam acenando, né?

- Ou será que estão tentando nos dizer tchau? Tem gente que diz que você deve passar os livros adiante, deixar nos sebos, talvez a gente devesse comprar livros dos sebos. O seu que você ganhou...
- Foi de um ex-amor, o sebo, o sebo é uma boa idéia. Se não der certo fica resolvido: compramos novos discos.

quinta-feira, maio 22, 2008

Diário de bordo

A transportadora entregou um dos 5 volumes trocado. Eram 4 rolos de tecido e uma caixa, a fábrica recebeu 5 rolos de tecido e zero caixa. Me telefonaram pra saber o que deveriam fazer com o tecido branco. Liguei para a transportadora pra dizer que um dos volumes tinha sido trocado. Depois de informar endereço, cnpj, inscrição estadual, cep, telefone, razão social, número da nota, endereço de destino, depois que a moça da transportadora entendeu que dos 4 volumes só um tinha sido entregue errado, depois que ela entendeu que o destinatário é que tinha recebido errado e não eu, depois disso a atendente perguntou pra onde tinha ido o volume errado. Eu respondi que não sabia porque eu não estava no caminhão no momento da entrega.

Houve uma greve de transportes no Espírito Santo e por conta disso nenhum dos funcionários da estamparia foi trabalhar e por conta disso também a produção das estampas atrasou alguns dias.

Os consertos de uma das modelagens deram um total de R$ 18,00. Eu precisava de troco para R$ 50,00. Combinei com o fornecedor que o boy passaria pra buscar e ele voltou com R$ 18,00 de troco. Telefonei pro fornecedor pra explicar que na verdade o troco era de R$ 32,00 e eu precisava do complemento. O fornecedor me enviou mais R$32,00 e de novo eu tinha os R$ 50,00 iniciais. Eu achei tudo muito engraçado e quis fazer aquele gráfico de pizzas ou enviar um esquema de fulan-tinha-50-laranjas-comeu-18-quantas-restaram-? Alguém acredita nisso?

A fábrica mandou uma caixa cheia de etiquetas de tamanho P, M e G todas misturadas. Elas medem cerca de 2,5 centímetros e a capacidade da caixa é de 10 mil etiquetas. Eu precisava de umas 200 de cada tamanho. Algumas horas depois eu consegui.

Eu estava experimentando um sutiã na sala de reunião quando o boy passou pela porta. Eu estava vestindo uma camisola de renda semi-transparente quando o arquiteto chegou...

Uma cliente enviou um sutiã para conserto reclamando que a costura do fecho incomodava suas costas. Eu queria mandar pra ela um sutiã Scala sem costura. Algumas clientes enviaram peças sujas para conserto. Não quero entrar em detalhes.

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Na manhã de terça arrumei a mesa. Limpei as gavetas, joguei fora os papéis, organizei as informações importantes numa pasta dividida por assunto, me livrei dos inúmeros retalhos de tecidos de outras coleções, copiei os telefones de todos os post-its na agenda do computador e até mesmo as planilhas foram melhoradas. Os arquivos de imagens e referências eu copiei no pen-drive, os lápis e canetas foram para a gaveta e o porta-trecos voltou pra minha casa, uma lista de instruções e pendências foi crescendo e em algumas horas a minha mesa estava mais ou menos como no dia em que a recebi de outra pessoa.

Ir embora sempre envolve uma faxina física.

Então eu comecei a enviar os emails. A lista de destinos era extensa, mais de 50. Eu sei que não vou ver mais essas pessoas com quem tanto falo no telefone, pessoas que vendem tecidos, que fazem modelagens etc. E é justamente quando você se dá conta de que o convívio com as outras pessoas, as que sentam nas mesas ao lado vai terminar. Algumas piadas, algumas epifanias, algumas risadas, alguns suspiros, algumas partes de nós só funcionam ali. Algumas das meninas estão preocupadas em saber quem será a próxima. Ficam pensando em como vão viver o dia a dia estressado sem as minhas imitações e cenas. Eu também não sei o que vou fazer sem a gargalhada delas. Não é bom pensar nisso ainda.

Antes preciso resolver o problema das camisolas. E terminar de enviar os emails que os dolorosos mesmo eu deixei pro final. A sorte é que as respostas chegam logo, todos me desejando boa sorte e sucesso, me pedindo meus telefones de contato e dizendo o quanto sentirão minha falta.

Pode ser tudo mentira ou ensaiado, não importa: sair do trabalho faz bem pro ego.

quinta-feira, maio 08, 2008

Carta a D.

My dearest,

Fazia tempo que queria mesmo parar. Ficar um dia em casa, ouvir músicas que me lembrassem você, te escrever.

Às vezes acho que o meu corpo funciona como um termômetro da minha cabeça e então percebo que preciso desacelerar.

Parece que o frio já começou por aqui. Voltamos a dormir de meias em casa, a praia está com aquele clima constante de fim de tarde e os cafés voltam a encher. Já tomo meu chocolate quente sem culpa. E chás. Uma pena, tiraram a minha sopa preferida do cardápio daquele restaurante. Quis protestar mas o garçom foi taxativo, a minha sopa não dava o menor ibope.

Ainda está quente aí?

Os noticiários continuam falando de coisas absurdas. Os anúncios de supermercado continuam absurdos também. Isso me faz pensar em como as pessoas não devem ligar pro que vêem. Acabo sempre desligando a tv. Estou com uma pilha de livros que não diminui. Ando sem foco, sem concentração. Esta semana emprestei dois livros a uma amiga. Um deles já estava na prateleira há um tempo. O outro mal tinha chegado. Foi um daqueles...! Li em poucas horas. Nunca empresto livros recém-terminados. Eu crio uma espécie de relação com os livros, preciso tê-los por perto, preciso reler trechos, gosto de saber que eles estarão ali. Gosto desse tempo de digestão, de ler arrebatamentos e de saber que eles estarão ali guardados e prontos para serem abertos de novo. Conversei sobre isso na análise.

Preciso me desapegar um pouco. Não, acho que não é isso. Mas preciso aprender a sofrer menos. Ao ficar longe das pessoas, ao me despedir das etapas, ao emprestar livros especiais para os amigos dois dias depois.

Ontem conversando ouvi: “Descobri que existe um lugar onde o chocolate é melhor que na Suíça. Acho que é na Bélgica”. Um pouco antes ele já tinha dito que havia viajado pelo mundo sem sair do lugar. Era o motorista que me levava até. Ele trabalhou anos num hotel. E foi lindo e triste ouvir aquilo. Eu tive vontade de comprar uma caixa de chocolates belgas para ele. Entende o que eu digo? Essas coisas me tomam, eu não sei como evitar. É o mesmo com os livros. Com as músicas também. Com os meus amigos.

Perguntei pra um deles outro dia quais eram as novidades. Um dos amigos, eu digo. Ela respondeu que havia parado de roer unhas. Eu gargalhei! E entendi. Entendi que essa era a resposta que eu podia esperar. E quis dizer a ela que a minha novidade era que voltei a dançar. Mas não voltei. Sabe, essas coisas dizem muito mais sobre as pessoas. Lembra quando me apaixonei por um cara que tinha uma rede no quarto? É isso o que acontece comigo. Eu aprecio os detalhes. E acho que eles são tão mais significativos. Talvez seja por isso que sofro tanto.

Encontrei aquele cara de novo. Não o da rede, o outro, você sabe. Não houve nada. Mas morremos de saudade em um segundo. Enquanto ele respirava no meu pescoço e eu no dele. Talvez três segundos... Eu sei que é bobagem. Continuei sentindo saudade depois, não sei ele. Mas sei que durante aquela respiração nós dois tivemos certeza um do outro e vai ver é isso... Eu sempre uso reticências quando falo dele, eu sei. Ele também usava quando falava comigo. Dava pra ouvi-las.

O que você tem escutado?

Acho que desisti daquela viagem. Na verdade não sei bem do que desistir. Sei que acabo insistindo em coisas por tempo demais, em pessoas e então de repente reavalio tudo e me bate essa dúvida. E então eu sinto aquilo que te disse no começo, uma dor nas costas, uma dor!

Hoje de manhã não consegui acordar. Ontem cheguei em casa chorando e minha mãe me deu um remédio. Acontece que hoje não houve jeito de sair da cama porque o remédio era muito forte e eu estava sonhando com a casa de Penedo. E eu precisava me esconder, precisava ficar num canto onde ninguém me encontrasse. No sonho. Eu era criança no sonho, dava passinhos pequenos. Eu não queria ir embora da casa de Penedo porque lá era muito seguro e voltar para o Rio era diminuir ainda mais o tamanho dos passos. Eu me escondia sob um lençol dentro da sauna e tentava apagar minha sombra na porta.

Eu estava apavorada no sonho. Eu estava apavorada ontem também. Entende por que eu não conseguia acordar? A minha cama era como respirar no pescoço dele, quente, seguro, feliz. E desabraçar isso tudo...

Não soube o final, se me encontraram na sauna ou se eu achei meu caminho de volta. O telefone tocou. Eu queria que fosse ele dizendo "eu também". Era do trabalho.

Sei que preciso dormir mais uma vez, está na hora de tomar o remédio de novo.

É esse o momento do dia em que penso muito em você e no seu caminho. Lembro do vôo que fizemos juntas e me pergunto quando vamos nos encontrar de novo. Não sei se estou pronta pra ir até onde você está. Acho que preciso me reconstruir primeiro. Torço pra que você não demore.
O livro eu te mando.

Espero que os cães estejam bem. O meu parece estar um pouco mais calmo. Faz alguns meses que não morde ninguém. O seu namorado eu sei que está bem. As fotos evidenciam! Dê um beijo nele. E não o desabrace, promete?

Um beijo com amor,

Sua prima.